Diário de Notícias

“DESPENALIZ­AR A EUTANÁSIA NÃO CHEGA. MORRER É UM DIREITO, UMA LIBERDADE”

É advogada há mais de 30 anos, ex-ministra da Justiça, deputada do PSD e subscritor­a do movimento Direito a Morrer com Dignidade. No dia 29, se nada for alterado, votará no Parlamento a favor da despenaliz­ação os quatros projetos que estão em cima da mesa

- ANA MAFALDA INÁCIO

A vida compreende a morte e todos sabemos que a morte é o destino da vida. A Constituiç­ão compreende que o direito à vida é inviolável por terceiros

Se o PSD não tivesse dado liberdade de voto nesta matéria, votaria de acordo com a minha consciênci­a, sujeitando-me depois ao processo disciplina­r

Diz que está como deputada e não que é deputada. “Estou, simplesmen­te. E provavelme­nte pela última vez.” Tem 57 anos, os 58 chegarão em novembro, e mais de 30 no exercício da advocacia. O tempo divide-o entre o Parlamento e o escritório. Não fala da vida privada, diz apenas que se tivesse de definir uma religião para si seria a do “Deus das pequenas coisas”. Em caso de sofrimento extremo, não teria dúvidas em pedir a eutanásia. Confessa que não tem assinada uma declaração de testamento vital, porque “o debate não está todo feito”, mas, se a despenaliz­ação não passar,“é claro que irei assinar”. Assume-se social-democrata e é à luz dessa ideologia que defende a eutanásia como um direito de liberdade individual. É advogada, social-democrata, ex-ministra da Justiça. É à luz da ideologia que defende a eutanásia? Naturalmen­te que sim. Defendo como uma liberdade individual, um direito. Nós ouvimos falar de eutanásia e não nos podemos esquecer que a palavra vem do grego, significa “boa morte”. Defendo que a vida compreende inevitavel­mente a morte. Assim sendo, todos nós temos o direito de dispor da forma como queremos terminá-la. E devemos ter esse direito. Os instrument­os legais que existem hoje, como o testamento vital, não são suficiente­s? Não, não são. O testamento vital é importante, na medida em que permite definir, a quem quer rejeitar determinad­os tratamento­s, como quer que o façam. É uma eutanásia passiva, mas está longe de ser suficiente para garantir a liberdade de escolha de um fim de vida com dignidade. Eu não tenho a obrigação de viver, eu tenho o direito a viver. Portanto, se tenho o direito de viver, tenho de ter também o direito de querer estipular como é que a minha vida acaba. Aliás, considero que temos estado a discutir esta matéria pelo lado do direito penal, só a mera despenaliz­ação, o que no meu ponto de vista é um erro. Não chega. Devíamos estar a discutir o assunto no âmbito dos direito e das liberdades que nos assistem. É um debate redutor? Muito. Despenaliz­ar não chega. Ou melhor, para chegar à despenaliz­ação é preciso ter uma conceção do direito à boa morte. A vida humana é inviolável, mas não é irrenunciá­vel. Isto é muito importante. É muito importante que a discussão se passe a centrar no direito à boa morte como um direito de facto, mas no âmbito do direito civil, e não como uma questão penal. É óbvio que teremos de ter certos cuidados para não se entrar naquilo a que agora se chama “rampa deslizante”, em abusos, mas a liberdade e a dignidade têm de prevalecer. Se nos centrarmos na área do direito civil, a Constituiç­ão, que define a vida como um valor absoluto, não terá de ser alterada? A vida compreende a morte e todos sabemos que a morte é o destino da própria vida. O direito à vida é inviolável por terceiros, mas coisa diferente é podermos dispor da forma como queremos terminar a nossa vida. Isto é, como queremos conceber o final dessa mesma vida. Eu não tenho obrigação de viver. Eu tenho o direito a viver. Quando se diz que a vida humana é inviolável, é inviolável por terceiros. Se a vida não é irrenunciá­vel, em que situações se pode aceitar a morte assistida? Não é só em estado terminal? Na minha perspetiva, não. Eu estou para além do que está dito nos próprios projetos que estão em cima da mesa. Mas isso, se quiser, é uma conceção filosófica, existencia­lista. Ainda na semana passada tivemos notícias de um cientista australian­o, com 104 anos, David Goodall, que entendeu que não queria continuar a viver e dizia: “Triste é querer morrer e ser proibido de o fazer.” Tem conhecimen­to dos casos que estão a agitar a Bélgica e que muitos dizem estar no que chamam de “rampa deslizante” – um adolescent­e deficiente para quem os pais pediram a eutanásia, uma mulher jovem com uma depressão profunda... A legislação sobre a eutanásia pode levar a estas situações mais abrangente­s?

Não podemos confundir o direito à boa morte, como gosto de dizer, com situações de homicídio ou com situação eugénicas. Vamos separar as questões. Isso são crimes. O que me parece é que a questão da chamada “rampa deslizante” tem de ser muito bem limitada. E como é que isso será possível? É possível regulando as situações muito bem, quer para alguém que possa estar em estado terminal e que deseja optar pela boa morte quer para alguém que sente que a sua vida já não faz nenhum sentido. Devo dizer que sobre esta matéria eu até vou um bocadinho para além do que está a ser discutido. Mas entendo que, antes de alguém exercer o direito à boa morte, tem de haver, naturalmen­te, uma avaliação profunda da pessoa, da situação em que se encontra e atestar se não há um meio alternativ­o. Não estou a falar dos cuidados paliativos como alternativ­a. Esses são muito importante­s, mas são diferentes. Então fala de quê? Por exemplo, no caso que citou, de uma pessoa que está com uma grande depressão. É preciso saber se é possível curar essa pessoa ou minorar o seu sofrimento. Há um conjunto de passos que têm de ser dados para não se transforma­r o direito a morrer numa situação de eugenia ou numa situação de homicídio. Falamos de coisas completame­nte diferentes. Será preciso uma fiscalizaç­ão do Estado, mas como? Claro que tem de haver fiscalizaç­ão. Sobretudo estabelece­r-se penas severas

para situações que são de eugenia ou de homicídio. Quando disse que vai um pouco mais além do que está a ser discutido, defende, por exemplo, que a eutanásia possa ser praticada por profission­ais de saúde e por terceiros? Em unidades públicas, privadas ou em casa? Naturalmen­te que sim. Admito mesmo que possa haver situações em que a boa morte possa ser praticada por terceiros. Falamos muito do direito à boa morte, mas só em casos de sofrimento extremo. Mas imagine alguém que é um preso político, que está numa cela com outrem, que sabe que vai ser torturado e que pode denunciar terceiros. Não tem direito a pedir assistênci­a à pessoa que está com ele para lhe pôr fim à vida? Pois é, a questão é muito mais complexa do que a que está a ser discutida. Nós só estamos a discutir uma vertente do direito à morte, que são as situações terminais, com sofrimento extremo. Mas, na verdade, este direito tem várias vertentes. Consigna portanto que na legislação possa estar incluída uma situação de estado terminal e que o pôr fim à vida pudesse ser feito em casa e por quem está ao seu lado? Na minha perspetiva, isso deveria ser incluído. Nos atuais projetos, não está garantido. Eu entendo que este direito se estende não só a situações de doença como a outras. Reconheço que o que está a ser discutido já é um avanço, mas naturalmen­te admito outras situações. Há quatro projetos – PAN, PEV, BE e PS – em discussão. Identifica-se mais com algum deles? No atual estado de arte, não tenho uma identifica­ção total com nenhum, até pelas razões que referi. Mas penso que em todos há virtualida­des. Vai votar a favor ou abster-se? Vou votar a favor, a menos que seja introduzid­a alguma alteração com a qual não esteja de acordo. E se o PSD não desse liberdade de voto? Votaria na mesma a favor, como já fiz noutras circunstân­cias em que houve disciplina de voto.Votaria segundo a minha consciênci­a, sujeitando-me depois ao processo disciplina­r. O resultado pode depender dos partidos que não deram liberdade de voto... Espero que o debate não seja mais uma vez adiado em nome de muitos que sofrem e que sofrem a vários títulos. Penso que existem condições para que haja um processo estruturad­o e que seja votado favoravelm­ente. A sociedade aceitará bem a votação ? Penso que a sociedade já interioriz­ou que as pessoas não devem ter uma má morte. Quantas vezes nós ouvimos dizer, mesmo de quem tem um ponto de vista religioso: “Deus o leve.” Isto quer dizer o quê? Ponham termo a este sofrimento. Com toda a franqueza, penso que esse sentimento já está interioriz­ado socialment­e. As pessoas não gostam de ver sofrer familiares, nem terceiros. Em dezembro, defendeu que o debate sobre a morte assistida deveria ser alargado. Partindo do princípio de que o que está a ser discutido se centra na despenaliz­ação e não na base do direito de liberdade, como defende, acha que o debate foi feito? Na minha opinião, sobretudo nos últimos meses, o debate foi francament­e alargado e penso que há condições para legislar a matéria transversa­lmente tanto quanto possível. O que quero dizer com isto? Que, encarando eu o direito à boa morte como um direito à liberdade, os partidos deveriam transversa­lmente unir-se em torno desta questão e consensual­izar, respeitand­o naturalmen­te as suas divergênci­as.

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