Numa década, Portugal saltou de uma atitude equilibrada na legislação familiar para soluções radicais e extremistas na ponta do espectro mundial
económicas e graves falhas no acompanhamento de idosos e doentes, perante um dos maiores envelhecimentos mundiais. Nada disso interessa quando se trata de impor dogmas considerados sagrados. A esquerda, incomodada pela sua descarada colaboração e promoção do capitalismo global, deseja polir emblemas ideológicos, confortando-se a demolir regras civilizacionais básicas.
O argumento comum a todos os episódios da reforma é o princípio da liberdade: é preciso dar aos cidadãos a maior escolha possível na sexualidade, reprodução, casamento, identidade e, agora, até na morte. Deste modo se implantou na família o mais radical neoliberalismo. Aqueles políticos que, no campo laboral, económico e social tanto bramam por leis, regulamentos e intervenções do Estado para proteger os fracos de abusos dos poderosos, pretendem no campo familiar eliminar todas essas defesas, implantando o mais absoluto desregramento. Não admira que os mais fracos – embriões, crianças, mulheres, doentes, idosos – estejam crescentemente indefesos perante a promiscuidade triunfante.
Apesar de invocar a liberdade, a reforma tem atropelado as mais elementares regras cívicas. É evidente a recusa de um verdadeiro debate democrático, aberto, plural e alargado, presente nos países civilizados. Em todo o Ocidente estas questões geram intensas e profundas discussões, ainda longe do consenso. Portugal só está na linha da frente porque uma elite arrogante e liberal tem imposto a sua ideologia sem contemplações, desprezando supinamente os adversários. Negando os direitos mais elementares às visões alternativas, consideradas antiquadas e obscurantistas, estes radicais têm imposto as suas certezas de forma ditatorial.
O aspecto mais estranho destas medidas é a sua incoerência. Segundo os próprios argumentos dos activistas, as novas regras não fazem sentido. Se vamos permitir matar crianças no seio das mães, porquê limitar às 24 semanas? O aborto devia ser permitido pelo menos até aos 18 anos; afinal um adolescente gera muito mais despesa e problemas do que um bebé. Se a definição de casamento depende apenas do amor, porquê reduzir a extensão aos homossexuais? Porque não autorizar incesto, poligamia, até o matrimónio com animais? Será que somos caninofóbicos ou felinofóbicos? Porquê confinar a eutanásia ao sacrifício físico? Porque não permitir eutanasiar pobres, deprimidos, criminosos e tantas outras formas de sofrimento? Afinal, com um pouco de argumentação, até se conseguiria o acordo do prisioneiro para se instituir uma pena de morte voluntária, semelhante à que tanto nos orgulhamos de ser os primeiros a abolir em 1867.
A nossa única reforma estrutural em duas décadas e meia é infame. A vantagem é que, imposta de forma tão leviana e atabalhoada, será fácil de abolir quando regressar o bom senso.