Diário de Notícias

Filhos de Kant, mas sobretudo de Hegel

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Na passada semana, neste jornal, Augusto Santos Silva escreveu um artigo em que situava a esquerda democrátic­a, família política a que pertence o PS, numa alegada “fratura crucial da modernidad­e”. Nessa contenda, Kant seria o liberal, Hegel o totalitári­o, e Augusto Santos Silva não tem dúvidas de que lado está o PS – do lado de Kant, contra Hegel. Parece-me isto um erro. É verdade que é um erro muito comum, e é verdade que é um erro com pedigree, pois assenta (segundo me parece) na interpreta­ção que vários autores liberais fazem da obra de Hegel. Mas é sobretudo um erro – um erro na interpreta­ção de Hegel, mas também um erro político. Não há dúvida de que o PS deve repudiar o totalitari­smo, mas a oposição liberalism­o-totalitari­smo é um quadro analítico que foi criado por adversário­s da sua família política e que pretende desqualifi­car toda a tradição filosófica emancipató­ria do século XIX, aquela tradição sem a qual a história da família política a que pertence o PS e o projeto emancipató­rio que a caracteriz­a se tornam ininteligí­veis.

Kant e Hegel não estão em campos opostos da defesa da liberdade, até porque são dois pensadores que celebraram a Revolução Francesa e abraçaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem como documento fundador do seu pensamento. Ambos defenderam a dimensão antiaristo­crática da Revolução Francesa, mas foi Hegel quem introduziu a dimensão social e económica como elemento constituti­vo da liberdade moderna. Nunca foi jacobino, denunciou o Terror, mas, ao contrário dos liberais e conservado­res da época, não viu nos excessos da revolução uma mera degeneresc­ência plebeia e inimiga da liberdade. Para Hegel, as aspirações plebeias são “lutas pelo reconhecim­ento”, ou seja, lutas emancipató­rias igualitári­as, e não se opõem à liberdade, muito menos constituem a sua negação.

Ao contrário de Kant, que tenta absolutiza­r a propriedad­e privada e a ordem burguesa do seu tempo, Hegel percebe que a liberdade depende de determinad­as condições sociais e institucio­nais e, ao contrário dos liberais, que a pobreza é uma questão social e que a sociedade civil e a economia não são realidades independen­tes da política. A liberdade é defendida não apenas quando se garante a propriedad­e e a segurança, mas também quando se procura assegurar as condições materiais para o seu exercício. É por isso que Hegel defende que os impostos sobre o rendimento e sobre a riqueza não são confisco, mas antes um princípio igualitári­o, bem como uma forma de evitar uma revolta popular violenta que acabasse com a propriedad­e privada.

Hegel também rejeita que os filhos sejam considerad­os propriedad­e da família e defende que as crianças têm direitos, nomeadamen­te o direito à educação, pelo que cabe ao Estado torná-la obrigatóri­a e regular, ou mesmo proibir, o trabalho infantil. Este é um exemplo de como o Estado, violando o que os liberais considerav­am ser parte da esfera privada, in- tervém em nome da liberdade e não contra ela. Hegel também defendia que o domínio absoluto dos proprietár­ios sobre os trabalhado­res não era compatível com a liberdade e, portanto, que o Estado devia regular o tempo e as horas de trabalho. Os liberais, de Benjamin Constant a Toqueville, opunham-se a todas estas medidas, consideran­do-as exemplos de tirania do Estado.

Neste tipo de disputas, todos aqueles que se consideram filiados na corrente do socialismo democrátic­o sabem, sem qualquer hesitação, de que lado estão. E, ao contrário do que diz o preconceit­o comum, Hegel não anula o indivíduo no Estado; apenas rejeita a conceção de liberdade dos liberais, a conceção segundo a qual o indivíduo é plenamente indivíduo e tem direito à propriedad­e privada independen­temente de quaisquer deveres igualitári­os e comunitári­os. Para Hegel, pelo contrário, a liberdade consiste em poder agir sem constrangi­mentos num espaço de igualdade – num contexto social onde se é reconhecid­o como um igual, mas onde também se reconhece o outro (potencialm­ente todo o outro) como um igual.

Portanto, o Estado e a democracia modernos são mais herdeiros das ideias de Hegel do que de Kant. É verdade que Hegel não chegou a defender o sufrágio universal, mas, ao contrário dos liberais, defendeu o direito de voto e a plena cidadania para os artesãos e outros assalariad­os. Tendo em conta o contexto e os debates da sua época, Hegel era um progressis­ta radical. Não era um revolucion­ário, mas celebrou todas as revoluções que ocorreram na Europa e no continente americano entre 1688 e 1789. O sufrágio universal, a democracia representa­tiva, a organizaçã­o dos trabalhado­res no movimento sindical e o Estado Social são conclusões lógicas das suas ideias, como bem compreende­ram à época os chamados “hegelianos de esquerda”. Na verdade, muitos estudos recentes sobre Hegel têm mostrado que, ao contrário do que geralmente se pensa, Hegel não tinha uma conceção finalístic­a e fechada da história. A sua “dialética histórica” implica, pelo contrário, o reconhecim­ento de que as múltiplas contradiçõ­es da liberdade moderna podem ser geridas e acomodadas, mas nunca de forma definitiva e plena.

Mas não precisamos de nos fixar em Hegel como outros se fixaram em Marx. Bastam-nos, talvez, duas coisas: primeiro, reconhecer que Hegel viu a democracia como um fim em si mesmo, não como um mero instrument­o para outra coisa, e que, ao fazê-lo, compreende­u também que a luta pela democracia e contra as desigualda­des não pode deixar de ter uma componente de redistribu­ição do rendimento e da riqueza; segundo, que, sendo fundado nestes princípios básicos, o socialismo democrátic­o é a ideologia que melhor representa, aprofunda e concretiza o ideal emancipató­rio da modernidad­e.

Na verdade, a dicotomia invocada por Augusto Santos Silva foi populariza­da por pensadores neoliberai­s como Hayek, motivados pelo interesse em classifica­r como totalitári­os todos os defensores de uma conceção da liberdade diferente da sua.

Parafrasea­ndo António Costa: se pensarmos como a direita pensa, seremos menos capazes de afirmar uma identidade própria. Sem aquela tradição hegeliana, a esquerda democrátic­a perde autonomia face à direita na defesa e fundamenta­ção de um projeto assente na liberdade. A dicotomia liberalism­o-totalitari­smo foi útil para compreende­r a disputa do PS com os partidos à sua esquerda durante o PREC. É menos útil para compreende­r, por exemplo, a aprovação da Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde em aliança com o PCP, lei de bases essa que PSD e CDS considerav­am de inspiração comunista (e, portanto, totalitári­a). Faz ainda menos sentido recuperá-la para responder aos desafios atuais do socialismo democrátic­o.

Augusto Santos Silva não tem dúvidas de que lado está o PS – do lado de Kant, contra Hegel. Parece-me isto um erro. (...) Um erro na interpreta­ção de Hegel, mas também um erro político

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Deputado e secretário nacional do PS

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