Diário de Notícias

O Casal e O Outro Casal, os corpos em fusão

- ANA SOUSA DIAS

Écomo se fosse um espelho, mas a reproduzir imagens que são ao mesmo tempo diferentes e idênticas. No andar térreo está Le Couple, o casal Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva. No andar de cima está O Outro Casal, Helena Almeida e Artur Rosa. Os dois casais têm em comum a profunda ligação, uma coisa física e quase feroz, a tal ponto que não é possível desvendar onde está o corpo de cada um nas imagens.

São duas exposições na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, em Lisboa, com o Jardim das Amoreiras ali ao lado pronto a acolher casais e pessoas sozinhas e crianças a correr. Gente a conversar, a descansar, a tomar café, a namorar.

Le Couple é o que mora ali em permanênci­a, o que dá nome e sentido à casa. Arpad e Maria Helena, ou como ele escreve num coração quase artesanal Maria e Arpad, o nome dela em letras muito maiores do que o dele. E no desenho seguinte ali está ele, desamparad­o de amor, o coração nas mãos, “c’est le seul cadeau que je peux t’offrir” (é o único presente que posso oferecer-te), em 1930. Os desenhos e pinturas que se seguem são de uma fusão crescente entre os dois, Couple Table (Casal Mesa), La Chaise Couple (A Cadeira Casal), quatro pernas e um corpo único, e finalmente os dois corpos abraçados, em pé, pintados numa tela dentro de uma tela. Um casal que durou uma vida.

E há O Outro Casal das fotografia­s de Helena Almeida, a mulher que em criança aprendeu a ser corpo em pose, quando passava horas, estática, como modelo do pai, o escultor Leopoldo de Almeida. A outra Helena, apetece dizer, que se tornou ela própria o objeto da sua arte, nas fotografia­s que foram sempre tiradas por ele, Artur, escultor e arquiteto. Ela desenha as formas que quer ver fotografad­as, num esboço fino em que ensaia o pé naquela posição, a perna mais para ali, os braços ao longo do corpo. Ele fixa a fotografia.

Mas aqui eles são um casal presente na imagem. Pensei: será que Helena admitiu a presença de uma terceira pessoa para criar estas fotografia­s? E Isabel Carlos, a curadora da exposição, cuidadora habitual da obra de Helena Almeida, explicou-me que os dois se fotografar­am com a câmara fixa, devidament­e enquadrada e programada para disparar depois. Não admitiram intrusos na intimidade da obra feita no ateliê.

[Lembrei-me daquelas fotos de família em que se artilhava um temporizad­or e finalmente todos ficavam a rir-se e a olhar para um que se precipitav­a para o grupo em cinco segundos e ficava sempre um pouco em desequilíb­rio.]

Uma sequência de oito imagens mostra-nos Helena e Artur ligados por uma manga de plástico que vão soprando até que rebenta e a ligação se interrompe. É a peça Ouve-me, a primeira em que figuram os dois, e está datada de 1979. As seguintes são todas muito mais recentes, já deste século, e os dois figuram em quadros gigantes, talvez em tamanho real. Pareceu-memais do que isso, tal é o impacto de vê-los, corpos entregues um ao outro, agarrados em desespero ou em aconchego, afastados e no entanto juntos.

De repente vem-me à cabeça a canção de Jacques Brel, Orly: Ces deux corps se déchirent Et je vous jure qu’ils crient Et puis ils se reprennent Redevienne­nt un seul

Mas não é nada disto que se trata. “A imagem do meu corpo não é a minha imagem. Não estou a fazer um espetáculo, estou a fazer um quadro”, como disse Helena Almeida a Isabel Carlos.

E isso mesmo percebemos nos dois vídeos que passam na exposição. Um deles, Pintura Habitada de Joana Ascensão, premiado no DocLisboa de 2006, são 50 minutos de Helena Almeida tentando, tentando sem desistir, mesmo quando exausta, mesmo quando lhe perguntam se não quer parar, ela a insistir em encontrar o equilíbrio sobre uma perna, sobre um sapato de salto alto, segurando a outra perna com uma mão, e tentando, tentando outra vez até conseguir fixar-se sem o apoio de um banco. O segundo vídeo mostra O Outro Casal com uma perna de um amarrada a uma perna do outro, andando com dificuldad­e para a frente e para trás, juntos e presos um ao outro.

Juntos, presos um ao outro durante uma vida inteira. O Casal e O Outro Casal.

Le Couple é o que mora ali em permanênci­a, o que dá nome e sentido à casa. Arpad e Maria Helena ou, como ele escreve num coração, Maria e Arpad

E há O Outro Casal das fotografia­s de Helena Almeida, que em criança aprendeu a ser corpo em pose como modelo do pai, Leopoldo de Almeida

Helena tentando sem desistir, mesmo quando exausta, mesmo quando lhe perguntam se não quer parar, até encontrar o equilíbrio

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