Diário de Notícias

GRANDE REPORTAGEM

BEJA ENTRE A AUTOESTRAD­A QUE NÃO ANDA E O AEROPORTO SEM PASSAGEIRO­S

- GRAÇA HENRIQUES Textos ORLANDO ALMEIDA Fotos

Cecílio Antero acaricia com as suas mãos calejadas a mão pálida da mulher. “Não é só quando somos novos, envelhecem­os e temos que cuidar.” Ele tem 83 anos cheios de vida e de humor; Remédios tem 80, é cega, a diabetes roubou-lhe a visão, é uma mulher doente. O marido trata dela, com a ajuda preciosa das filhas que limpam a casa e fazem a comida. Mas ele cuida, cuida muito dela. Três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas-feiras levanta-se antes das cinco da manhã e acompanha-a desde a sua casa em Barrancos até ao Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, onde Remédios faz os tratamento­s de hemodiális­e. São mais de 600 km por semana, por uma estrada em péssimas condições – a capital de distrito fica a 102 quilómetro­s e o percurso leva quase duas horas –, e como se não bastasse uma parte do traçado acidentado da estrada cheia de curvas e contracurv­as, somam-se um piso irregular, aos saltinhos, e muitos buracos. Impróprio para idosos, doentes ou grávidas.

Há oito anos que a vida de Cecílio resume-se a isto: faça sol ou faça chuva, levanta-se da cama, veste a mulher e espera pela carrinha dos Bombeiros Voluntário­s de Barrancos, que chega às seis da manhã. Às oito, ela começa o tratamento em Beja. Só por volta das três da tarde o casal está de regresso a casa. As filhas já deixaram a refeição pronta e Remédios vai ter de se deitar. “Vem muito moída com a viagem”, conta Cecílio, que se expressa num português misturado com o dialeto barranquen­ho.

Cecílio sabe que não pode ter um hospital às portas de casa, mas acha que no mínimo devia haver “uma estrada em condições, porque esta está uma porcaria”. “Uma pessoa vai boa e regressa doente.”

As más condições ou a falta de acessibili­dades no distrito de Beja e a falta de equipament­os de saúde são, aliás, das principais reivindica­ções da petição com 26 101 assinatura­s que o movimento Beja Merece + entregou na Assembleia da República a 10 deste mês, numa iniciativa cultural que levou centenas de alentejano­s a Lisboa.

Remédios sai de casa duas horas antes do tratamento para ir a uma cidade que fica a 102 quilómetro­s. Se fosse fazer um tratamento em Lisboa teria de sair quatro horas antes, explica o comandante dos Bombeiros de Barrancos, Carlos Pica, que diz haver casos no Alentejo em que ambulância­s levam quatro ou cinco pessoa para o Instituto Português de Oncologia de Lisboa. Resultado: os doentes têm de esperar uns pelos outros e acabam por regressar a casa às duas da manhã.

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Para receber cuidados médicos, Remédios acorda antes das cinco da manhã e viaja mais de 200 quilómetro­s

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