“O PS entregou a praça pública à gritaria da extrema-esquerda”
Acabada de ganhar o Festival da Eurovisão, israelita Netta era arrastada na lama do universo virtual. A razão? Apropriação cultural flagrante. O quimono, o cabelo preso num duplo coque, os maneki nekos a encher o palco... nada enganava naquele look tradicionalmente japonês, copiado sem ponta de vergonha pela cantora que nem uma ascendente em terceiro grau tinha para os lados de Tóquio. Para quem não está familiarizado com o conceito, a apropriação cultural acontece quando alguém decide usar símbolos ou modas de uma cultura que não é a sua. Como uma loira decidir cobrir a cabeça de rastas. Ou uma africana esticar o cabelo. Certo? Errado. Aparentemente, a apropriação cultural só existe quando são os ocidentais a copiar tendências de outras paragens. “Há dois pesos e duas medidas”, concorda João Pedro Marques. E explica que “há um sentimento de culpa e um ímpeto de penitência – que também se relaciona com a nossa religiosidade – e que é avassalador”. Conta-me que recentemente, num concerto de Kendrick Lamar, uma fã (branca) foi chamada ao palco para cantar com ele M.A.A.D City. Mas acabou violentamente vaiada e convidada a sair de cena por não ter omitido a palavra nigger – um afrodescendente, como o próprio, pode, mas um branco não, mesmo que esteja a cantar as palavras que o Pulitzer deste ano escreveu, explicou o rapper.
É um sinal dos tempos que vivemos, concluo, na esplanada do Café In, onde me sento com o historiador e autor. Com o sol ainda a decidir se perde a timidez, João Pedro Marques explica que é esse certo complexo que explica “disparates” como a recente controvérsia à volta do Museu das Descobertas – que ainda antes de se concretizar já foi achincalhado como símbolo do colonialismo, levando a câmara a considerar mudar-lhe o nome para A Viagem, numa tentativa de ferir menos suscetibilidades.
“Isto acontece precisamente por causa do politicamente correto e desse sentimento de culpa que resulta em que os ocidentais são vistos como os responsáveis por todas as coisas penosas, difíceis, desagradáveis.” É o que acontece com esta recentemente descoberta vergonha do nosso passado, que o historiador lamenta sobretudo pela ausência de lógica. “São Descobrimentos, sim, as pessoas descobriram-se mutuamente, encontraram sítios, coisas, situações que desconheciam. Os europeus não conheciam aquele mundo, o velho mundo não conhecia a América, portanto é mesmo uma descoberta – que tem até também um lado científico (na náutica, na cartografia). Infelizmente, os politicamente corretos e a extrema-esquerda que incendeia esta fogueira querem retirar o brilho, enevoar os aspetos positivos dos Descobrimentos com toda essa carga de culpa.”
À mesa do pequeno-almoço, servida a tosta mista e o meu crepe com o café a acompanhar – para João Pedro a manhã já vai longa, por isso opta pelo garoto –, é por aqui que vai tomando rumo a conversa. E corre com ritmo e prazer, como acontece quando se escuta quem conhece bem a história e sabe comunicá-la – aperfeiçoou esse talento com os oito anos como professor de liceu, que confessa terem-lhe dado imenso prazer (“às vezes ainda há antigos alunos que me abordam na rua!”) e, mais tarde, a ensinar na Universidade Nova. Não foi essa, porém, a sua primeira escolha, como há de confessar nos intervalos do tema que mais preenche a conversa que se vai tecendo em volta do politicamente correto e do sentimento de culpa que os europeus têm ainda por, em determinada altura, terem dominado o mundo – “por vezes em situações de violência cruel, com situações horríveis como foi o colonialismo do século XIX em diante”, admite, concretizando que “a forma como se entrou em África é uma coisa aterradora”.
“À luz da época, considerava-se que outras raças eram inferiores e isso resultava em comportamentos de enorme atrocidade. Mas há depois um sentimento explorado pela extrema-esquerda que se prende muito com a matriz judaico-cristã e que outras culturas não têm muito.” Dá como exemplo um dos momentos mais violentos da história: a expansão mongol liderada por Genghis Khan e seus sucessores, que na conquista relativamente rápida de um império que ia da Manchúria à Hungria dizimaram toda a vida com que se cruzavam. “A conquista de zonas como o Irão e o Iraque foi de tal forma violenta que os cronistas árabes deixaram relatos de em certos sítios terem matado tudo, até gatos e cães. A zona norte da China, que tinha 50 milhões habitantes, depois da sua passagem ficou reduzida a nove milhões.”
Aqui, porém, para esta visão penalizada em relação ao passado, encontra um gatilho concreto e recente. “O caso da escravatura começou a ser soprado pela UNESCO, que incendiou isto tudo – há sobretudo uma historiadora ativista que conheço, Verene Shepherd, que tem uma visão completamente enviesada da história e assina muitos desses artigos. O tema teve enorme desenvolvimento a partir da década de 1960, estudou-se e publicou-se muito, sobretudo nos EUA, e na década de 1990 sabia-se a fundo o que aconteceu. Mas alguns seto- res, nomeadamente nas Caraíbas, não gostaram do rumo da investigação e do que se desenterrou – incluindo que alguns entre esses povos escravizados eram participantes ativos e tinham vantagens no negócio; só no século XIX foram militarmente subjugados, muito antes disso já havia venda de escravos para o mundo muçulmano, para o Norte de África, para
“Os europeus têm ainda um certo sentimento de culpa por terem, numa determinada altura, dominado o mundo” “O PS cedeu e entregou a praça pública à gritaria da extrema-esquerda” “Vivemos numa sociedade policial. E a direita está a dormir”
o Índico, o golfo Pérsico, o mar Vermelho. Então foi lançada uma campanha para reescrever a história, sujeita ao lema ‘vamos quebrar o silêncio’ – o que é um absurdo, porque o tema estava incrivelmente disseminado, A Cabana do Pai Tomás era o romance mais vendido do mundo.”
Aos 67 anos, casado e com dois filhos – a mais nova, Joana, protagonista do Canal Q no programa Altos e Baixos, em que defende as cores do FC Porto contra o marido benfiquista – assume que a família foi sempre mais importante para ele do que a carreira e talvez por isso mesmo tenha dado tantas voltas. Depois de uma infância sobretudo passada em casa os avós, no Restelo – uma época de que ainda tem saudades –, a paixão por carros que o fazia memorizar tudo quanto havia para saber de corridas e afins levou-o a inscrever-se em Engenharia Mecânica no Técnico. Mas depressa percebeu estar fora de pé e trocou a universidade por um emprego no armazém da loja de brinquedos do avô, a Quermesse de Paris, e mais tarde na Concentra. Casou-se e divorciou-se, descobriu a sua paixão por História e em 1974, voltou à universidade – “foi uma altura fantástica, em que tudo se questionava, fervilhava, havia discussões incríveis”. Recorda com um sorriso esse tempo que não foi fácil, em que acumulava os estudos com um novo emprego na Caixa de Previdência da Buraca e a vida com a segunda mulher, até arrancar a carreira de que finalmente fez vida.
Quatro décadas passadas, o historiador diz que até entende parte do atual movimento de tentativa de reescrever os factos como uma necessidade de contar uma história romanceada, em que de um lado haja apenas heróis e do outro os ocidentais, e o escravo que participava no negócio nunca seja retratado. Mas lembra que muitas revoltas de escravos foram abortadas porque foram denunciadas pelos próprios – o que se explicava pela total sujeição e submissão a que estavam sujeitos e consequente tentativa de melhorar um pouco que fosse a sua posição.
“Sempre houve escravos, sempre houve revoltas de escravos, mas nunca isso acabou na sua libertação”, sublinha, recordando o exemplo de Spartacus em Roma, que não só não levou à abolição da escravidão como resultou em sete mil sobreviventes crucificados. Sobretudo, lamenta que se confunda a memória – que é parcial e em certa medida fantasiosa – com a história, que deve ser rigorosa e levar tudo em consideração. E exemplifica: “Não há nada errado em querer manter viva uma memória, o que contesto é que seja o município a pagar um memorial aos escravos que se pretende seja uma afronta à celebração das Descobertas porque se entende que não se pode louvar uma época e um movimento que abriu a porta ao morticínio.”
Lembra que a relação entre brancos e negros não foi sempre aquela que hoje temos por referência quando invocamos tempos passados e que o conceito de racismo é relativamente recente. “Essa ideologia, essa visão muito específica que se prende com a convicção de que existem raças, que elas estão hierarquizadas e que todos os seus elementos têm as características que se atribuíram a essa raça – que é um absoluto e completo disparate – surge no século XIX. Antes não havia esse preconceito.”
Diz que por cá esses argumentos pegaram fogo após o pedido de desculpas do Presidente Marcelo no Senegal, em abril do ano passado, estimulados nas redes sociais e pelos muitos portugueses que estão a dar aulas nos EUA e no Brasil, tornando-se hoje difícil lutar contra eles. “Já se alteraram passagens de livros, há vontade de mexer nos currículos e nos programas escolares... e isso vai acontecer, porque o PS cedeu e entregou a praça pública à gritaria da extrema-esquerda. Não todo – Sérgio Sousa Pinto foi uma das primeiras vozes contra esta tendência –, mas a maioria cala-se em nome da sobrevivência da geringonça.”
Conforme vamos avançando no pequeno-almoço, confessa que o que mais assusta são as proibições, o não se poder pensar diferente do politicamente correto, o ser considerado um perigoso reacionário caso não se concorde com essas correntes. “Vivemos numa sociedade policial”, conclui. Então e o resto da sociedade? Está a dormir? Assente. “Está. A direita está a dormir. Nesta questão do Museu das Descobertas o país mexeu-se porque estava-se a tocar numa coisa central da nossa história e identidade, a de um pequeno país que fez algo extraordinário – e isso diz muito aos portugueses. E bem, porque eram homens incríveis, que mostraram enorme coragem em condições extremas. Mas a história da escravatura nem querem saber – o que também acontece porque lhes é distante, já que, ao contrário de Inglaterra ou França, Portugal fazia esses movimentos de escravos entre colónias, não incluindo a então metrópole.”
Pedimos mais um café e um garoto para prolongar a conversa, e uma pergunta sobre a sua atividade mais recente, como escritor, volta a fazê-lo viajar no tempo. Conta-me que começou a escrever depois das duas décadas passadas como investigador no Instituto de Investigação Científica Tropical – onde realmente descobriu o século XIX. “Não sabia nada deste assunto e quando tive de estudar um tema relacionado com as colónias e esse período fiquei surpreendidíssimo, porque percebi que tinha imensas ideias erradas.”
Nesses anos, leu quase todos os jornais do século XIX, e foi neles que colheu ideias e inspiração para os romances que escreve. A sua estreia, Os Dias da Febre, acontece depois de recolher dados e documentos sobre uma epidemia de febre-amarela em Lisboa e concluir que provavelmente muito poucos teriam interesse em ler as suas conclusões num artigo científico – então decidiu tecer à volta delas uma história de amor. A experiência correu bem – ainda que confesse que a escrita tem momentos de grande frustração –, e a sua segunda incursão nestas lides, Uma Fazenda em África, tornou-se um sucesso. Honestamente, João Pedro não sabe dizer se gosta mais do que aquilo que lhe custa escrever, tentar pôr em palavras algo próximo daquilo que quer dizer. Mas vai andando neste caminho – e já tem o sexto romance em andamento.
Seja como for, “hoje o ato de escrever é muito menos solitário porque há grande interação com os leitores, enviam mensagens, pedem-me para ir falar a vários sítios”, e isso anima-o. Da mesma forma como, mesmo que o desgoste o radicalismo entranhado do politicamente correto, veja a luz ao fundo do túnel. “A verdade é que as pessoas estão a começar a reagir a essas tendências, a partir o politicamente correto.” E os fenómenos populistas pelo mundo são prova disso.