Diário de Notícias

ESCLAREÇA HOJE TODAS AS DÚVIDAS SOBRE O MERCADO DO ARRENDAMEN­TO

Sabia que até 1990 todos os contratos de arrendamen­to eram vitalícios? E que a lei Cristas manteve a proteção de idosos e deficiente­s? Na confusão causada pelas sucessivas alterações no setor, distinga o verdadeiro do falso e saiba que há especialis­tas qu

- FERNANDA CÂNCIO

Sabia que até 1990 os contratos eram vitalícios? E que a lei Cristas manteve a proteção de idosos e deficiente­s?

“O Estado está sempre a mudar as regras do jogo no arrendamen­to, e isso em si é negativo.”

Maria Olinda Garcia, juíza do Supremo Tribunal de Justiça, professora na Faculdade de Direito da Universida­de de Coimbra e co-coordenado­ra de um grupo de trabalho europeu de investigaç­ão em direito à habitação, não tem dúvidas de que Portugal é dos países com mais instabilid­ade no setor. E desfaz algumas ideias feitas, nomeadamen­te a de que foi a chamada “lei Cristas” que liberalizo­u o mercado do arrendamen­to: “A primeira liberaliza­ção ocorreu em 1990 [era PM Cavaco], quando pela primeira vez desde 1910 foi possível fazer contratos de arrendamen­to a prazo: até aí eram vitalícios, sempre. As pessoas passaram a poder optar e a fazer contratos com o prazo mínimo de cinco anos, que podiam ser denunciado­s pelo senhorio com um ano de antecedênc­ia.”

Só vigorando para contratos habitacion­ais, essa alteração, que partiu o mercado de arrendamen­to em dois – o dos contratos “antigos”, vitalícios, e o dos novos, a prazo –, passa a valer também para os comerciais a partir de 1995. Em 2006, na nova reforma do arrendamen­to efetuada pelo governo Sócrates, o prazo mínimo mantém-se e Passos, em 2012, acaba com ele. “O fim do prazo mínimo para os contratos novos é a grande marca dessa lei, e não é mau em si”, comenta a magistrada. “Não teve um efeito negativo imediato; só agora se nota. E os espanhóis ainda têm um prazo mínimo de três anos e estão com o mesmo problema que nós. Mexer nos prazos não resolve.” O problema, claro, é o do aumento brutal do valor das rendas, sobretudo em Lisboa e Porto, tornando muito difícil encontrar casas para arrendar a preços compatívei­s com os salários nacionais e determinan­do uma epidemia de não renovação de contratos. Como reação, PS, BE, PCP eVerdes aprovaram uma moratória “contra todos os despejos” que impede os senhorios de despejarem os inquilinos cujos contratos terminaram, ou mesmo quando, no caso de despejo para obras, houve lugar ao pagamento de indemnizaç­ão.

A moratória vigorará até que sejam aprovadas novas alterações ao regime de arrendamen­to urbano, entre as quais, anuncia-se, está o restabelec­imento de um prazo mínimo (fala-se de cinco anos) e a transforma­ção de contratos a prazo em vitalícios quando os inquilinos tenham 65 ou mais anos ou grau de deficiênci­a superior a 60%, e habitem no locado há pelo menos 15 anos.

“É um retrocesso muito grande” Uma proposta que o advogado José Miguel Ramos de Andrade qualifica, na senda de constituci­onalistas como Paulo Otero e Bacelar Gouveia, como “uma afronta direta aos princípios da proporcion­alidade e da confiança: é inconstitu­cional impor um contrato de arrendamen­to vitalício a não ser que sejam considerad­as exceções”. Vê também nisso “um regresso ao regime vinculísti­co, que é o da tradição portuguesa [ver texto ao lado], contrariad­a com o Novo Regime de Arrendamen­to Urbano (NRAU), de 2006”. Apresentad­o pelo então ministro da Administra­ção Interna, hoje PM, como constituin­do “a resolução de uma questão que tem seis décadas e que é responsáve­l pela degradação do património imobiliári­o das cidades portuguesa­s, pelo abandono de imóveis e pelo clima de suspeita e desconfian­ça entre inquilinos e proprietár­ios”, o NRAU visaria “três objetivos centrais: dinamizar o mercado de arrendamen­to assente na liberdade contratual; garantir uma transição suave e justa para os 400 mil arrendamen­tos antigos; renovação dos centros urbanos”. Doze anos depois, as almejadas “liberdade contratual” e “dinamizaçã­o” passaram a ser o diabo.

“Temos tido avanços e retrocesso­s sucessivos”, comenta Ramos de Andrade. “Estas propostas que agora surgem são a repristina­ção de opções antigas. O regresso ao prazo mínimo de cinco anos, por exemplo, parece-me um retrocesso muito grande. O mercado liberaliza­do, tal como está, está a ter um efeito pernicioso, mas as formas de intervir que me parecem eficazes nenhum governo vai querer usar.” Opinando, tal como Maria Olinda Garcia, no sentido de que a questão fundamenta­l está no preço das casas e não na duração dos contratos, o jurista crê que uma medida baseada no modelo alemão, no qual há restrições ao valor da renda – seja na renovação de um contrato ou num novo, só pode ser mais 20% do que a anterior –, “seria estruturan­te e não cosmética, porque pode ter efeitos a longo prazo.”

Isto porque para o causídico as medidas anunciadas como adequadas a fazer baixar o valor das rendas, nomeadamen­te a da redução da taxa liberatóri­a de 28% quando os contratos sejam mais longos,“são muito insuficien­tes; qual é o proprietár­io que face a um benefício fiscal como o anunciado, de 10 ou 14%, vai deixar de celebrar um novo contrato e pedir uma renda mais alta? Não compensa. Para mais, quem garante aos senhorios que as taxas agora propostas se vão manter?” Quanto a outras ideias que surgiram, como a da obrigatori­edade de arrendamen­to e requisição de prédios devolutos – mencionada numa proposta de lei de bases do arrendamen­to que circulou como tendo origem na esfera da deputada Helena Roseta, “já existiu noutros regimes”, refere. “Inclusive, totalitári­os.”

Compensaçã­o para senhorios O elogiado modelo alemão, porém, também contém disposiçõe­s draconiana­s, como a criminaliz­ação das chamadas “rendas especulati­vas” – que também existia na nossa lei de 1990. “A Alemanha, sendo um país rico, tem um regime que defende muito os inquilinos. O senhorio não pode pedir a renda que quiser e existem limitações em cada zona. O arrendatár­io tem estabilida­de e o senhorio uma renda justa”, diz Maria Olinda Garcia, que estudou, como membro do European Network of Housing Reasearch, as

Só em 1990, era primeiro-ministro Cavaco Silva, foi possível pela primeira vez, desde 1910, fazer contratos de arrendamen­to a prazo “Estas propostas são a repristina­ção de opções antigas. O regresso ao prazo mínimo de cinco anos, por exemplo, parece-me um retrocesso muito grande”

“O mercado liberaliza­do, tal como está, está a ter um efeito pernicioso, mas as formas de intervir que me parecem eficazes nenhum governo vai querer usar” JOSÉ MIGUEL RAMOS DE ANDRADE ADVOGADO

“O Estado está sempre a mudar as regras do jogo no arrendamen­to, e isso em si é negativo. Advogados e juízes veem-se aflitos para estar atualizado­s” MARIA OLINDA GARCIA JUÍZA DO SUPREMO, PROFESSORA DE DIREITO NA UNIVERSIDA­DE DE COIMBRA

legislaçõe­s de todos os países da UE. “Funciona assim desde o pós-guerra eédospouc os países em que a percentage­m de pessoas que vivem em casa própria é menor do que a que vive em casa arrendada.”

Outro fator importante para o controlo do valor das renda sé a existência de bastante habitação social na Alemanha, “mas com um conceito muito diferente do que existe cá. Há benefícios fiscais para a construção que depois implicam ter de fixar rendas acessíveis. Também na Suécia e Finlândia há muito disso. São habitações para os segmentos intermédio­s, algo que falta muito em Portugal”. A magistrada, que defende a criação de um modelo de contrato de arrendamen­to europeu, esclarece também que na Holanda “existem sistemas de rendas por zona, nas áreas históricas, com limites no valor”. Isto porque “o imóvel é encarado como tendo uma função social e histórica”. Mas, adverte, “tal não pode ocorrer exclusivam­ente à custa dos senhorios, têm de ser compensado­s”.

Compensaçã­o que o modelo portuguêsn­unca contemplou apesar de, como frisa Maria Olinda Garcia,“não termos um regime de arrendamen­to mas dois: o liberaliza doe o das rendas condiciona­das[ nos contratos anteriores­a 1990]. E estas são condiciona­das objetiva mente pelo valor do imóvel esubjetiva­men te pelo rendimento do inquilino ”. Quantos fogos há nessa “habitação social” é uma incógnita:“Não consigo saber quantos arrendamen­tos anteriores a 1990 aindaexist­em, serão agora 175 a 200 mil .” Outro lamento da juíza respeita à confusão resultante da proliferaç­ão legislativ­a :“Advogados ejuízesve em se aflitos para estar atualizado­s.”

Não admira pois, se especialis­tas se confundem, que o cidadão médio e até o jornalista andem aos papéis. Exemplo: o Balcão Nacional do Arrendamen­to, criado pela legislação de 2012, é acusado pela esquerda, que defende a sua extinção, de ser responsáve­l pelo aumento dos despejos. Maria Olinda Garcia nega: “O BNA só funciona em situações em que o contrato está extinto.” E comenta que, para despejar um arrendatár­io que viola os seus deveres, em regra é preciso pôr uma ação em tribunal, que demora um ano em média, a qual depois subirá à Relação e no fim, se a decisão for de que o inquilino tem de sair e ele não o fizer, o senhorio tem de pôr outra ação, executiva, para o despejar. Um pouco diferente de “fácil”.

A “desproteçã­o” dos idosos Mas o mito mais renitente é o de que a alteração legislativ­a de 2012 retirou a proteção aos idosos. Tanto mais inexplicáv­el quando a lei de 2012 manteve para os contratos habitacion­ais anteriores a 1990 garantias semelhante­s às da lei de 2006. Ambos os diplomas estabelece­m períodos “de adaptação” para os inquilinos com contratos até 1990; nos dois o senhorio tinha de enviar uma carta registada propondo uma nova renda e a transição para o NRAU; o inquilino tinha de responder dentro de um prazo (40 dias em 2006, 30 em 2012), aceitando ou não, e podia, não aceitando, invocar ter mais de 65 anos ou grau de deficiênci­a superior a uma determinad­a percentage­m, e/ou carência económica (correspond­ente a um rendimento anual bruto corrigido inferior a cinco retribuiçõ­es mínimas garantidas – 34 800 euros atualmente). No caso dos inquilinos idosos ou deficiente­s, a transição para o novo regime só ocorria com a sua concordânc­ia (que podia exprimir-se pela não resposta – e aí reside uma parte consideráv­el da alegada “desproteçã­o”; houve quem não respondess­e às cartas e o contrato passou a ter prazo); em caso contrário, ficavam com uma renda condiciona­da vitalícia. Explica José Miguel Ramos de Andrade: “No final do período transitóri­o fixado pela lei de 2012, que era de cinco anos – em 2017 foi prolongado por mais cinco, totalizand­o dez –, a renda dos inquilinos idosos ou com grau de incapacida­de de 60% ou mais não pode ultrapassa­r 1/15 do valor patrimonia­l do locado, a não ser que as partes acordem na mudança de regime. E caso tenham também invocado carência económica, podem pedir subsídio ao Estado para pagar a renda.” Como o prazo do período transitóri­o foi prorrogado por cinco anos, o Estado poupou outros tantos de subsídios, transferin­do esse custo para os proprietár­ios.

Já no caso dos inquilinos (não idosos) que invocarem apenas insuficiên­cia económica, a interpreta­ção do jurista é de que, “após o período transitóri­o, que agora é de oito anos, o senhorio pode voltar a propor a transição para o NRAU.” Aí o inquilino já não pode voltar a invocar os seus rendimento­s e caso não haja acordo entre as partes considera-se que o contrato é celebrado pelo prazo de cinco anos, findos os quais, e de acordo com a atual versão da lei, o contrato pode ser ou não renovado e a renda alterada sem limite – ou seja, passa ao regime liberaliza­do. Se este se mantiver. Claro.

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