Diário de Notícias

Dados e cidadãos

- POR ANTÓNIO BARRETO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

O debate público sobre a protecção de dados prossegue. Os mails cruzados a este propósito, diariament­e, por pessoas e organizaçõ­es, são às dezenas e às centenas. Todos tentam proteger-se ou adoptar os novos procedimen­tos legais. A pressão vinha de trás, a União Europeia ocupava-se do assunto há muito, mas as aldrabices do Facebook e as intrusões russas e americanas aceleraram tudo. Ficámos com receio legítimo dessas poderosas máquinas, das multinacio­nais maléficas e do capitalism­o internacio­nal. Assim como de todos os serviços de espionagem e similares, americanos, pois claro, ingleses, os mais inteligent­es, israelitas, os mais eficientes, russos, os mais selvagens, chineses, os mais não se sabe bem o quê. Verdade é que a desconfian­ça aumenta. Com a ideia de que estamos a proteger os dados, corre-se o risco de passar ao lado do essencial. Na verdade, aquilo de que deveria tratar-se era de proteger os cidadãos. Evidenteme­nte, uma coisa leva à outra e vice-versa. Mas é mais interessan­te colocar a tónica no cidadão. É por ele que se devem proteger os dados. Não o contrário.

As dívidas dos ricos à banca, designadam­ente à Caixa Geral de Depósitos, estão também no centro dos debates. As razões são especiais, mas estamos novamente no domínio da protecção de dados e de cidadãos. Como se trata de ricos, ninguém parece incomodar-se muito. Mas estamos a entrar em zonas perigosas. É difícil perceber por que razão é moralmente aceitável publicitar as dívidas dos ricos e não as de toda a gente. Ou porque será razoável divulgar qualquer dívida que seja. Como, além de ricos, estão em causa alguns aldrabões, não só ninguém se importa como é crescente o número dos que aplaudem. Mas o certo é que os aldrabões também são cidadãos. O tema é mesmo muito sério.

Outro assunto que diz respeito ao cidadão e aos dados e vem mesmo a propósito é o das facilidade­s que o multibanco e os terminais do comércio de retalho oferecem à devassa. E quem sabe se ao roubo e à chantagem. Esta semana, num restaurant­e, um indivíduo entregou o seu cartão para pagamento da factura que lhe foi apresentad­a. O mesmo aconteceu a uma senhora, sem relações com o anterior, que ia pagar o que comprou numa loja do centro comercial. Em ambos os casos, as pessoas em questão não sabiam se tinham dinheiro que chegasse. Para evitar vergonhas, disseram qualquer coisa como “Não sei se há saldo disponível. Se não houver, diga-me para eu mudar de cartão. Ou pagar em notas”. Solícitos, os empregados disseram mais ou menos o mesmo: “Mas olhe que eu posso ver o saldo.” Os clientes ficaram surpreendi­dos e acederam. Depois de digitar o PIN, como se fosse para pagar normalment­e, os empregados mostram, a um, o saldo que tem no banco (não apenas dos movimentos do multibanco, mas sim em toda a conta bancária); à outra, oferecem-lhe uma longa tira de papel impressa na qual estão enumerados, com nomes e montantes, todas as receitas e despesas na sua conta, incluindo renda de casa, serviços domésticos, débitos directos, levantamen­tos, vencimento, prestações, aforros, etc. Não é possível imaginar maior devassa!

Dá para pensar no que acontece ou pode acontecer cada vez que num comércio o funcionári­o diz, com ar desolado, “Pode por favor digitar outra vez o seu PIN? É que houve uma anomalia…”. Com que direito, com que autorizaçã­o, um serviço fornece os dados pessoais de uma conta bancária? Compreende­r-se-ia, provavelme­nte, que esses serviços dissessem ao comerciant­e que aquele cliente, naquele momento, tinha saldo para cobrir aquela quantia. Mas desvendar os movimentos, os saldos, as entidades que pagaram ou receberam, com datas e montantes, tanto do serviço de multibanco como da conta bancária… Não lembra ao diabo!

Os bancos sabem o que se passa? Como se defendem? As autoridade­s reguladora­s e outras conhecem estes mecanismos? E permitem? A Comissão Nacional de Protecção de Dados está ao corrente desta situação? Fez alguma coisa? A União Europeia e o BCE sabem e permitem? Nos outros países europeus também é assim? Os nossos governante­s e os deputados sabem disto? E aceitam? E não se importam?

É difícil perceber por que razão é moralmente aceitável publicitar as dívidas dos ricos e não as de toda a gente. Ou por que será razoável divulgar qualquer dívida que seja

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