Diário de Notícias

Populismo à italiana, convergênc­ia à portuguesa e geringonça à espanhola

- JAIME NOGUEIRA PINTO HISTORIADO­R E ESCRITOR

Depois das profundas alterações políticas no Ocidente, começadas pelo brexit e pela eleição de Trump em 2016 e continuada­s pela passagem de Marine Le Pen à segunda volta das eleições presidenci­ais francesas em 2017 e pelas vitórias das direitas conservado­ras e populares nos países do chamado Grupo deVisegrad­o, chegou a vez da Itália, que nas eleições de 4 de Março passado penalizou os partidos clássicos da esquerda e do centro-direita e deu vitória aos populistas do 5 Estrelas e aos nacionalis­tas da Liga.

O denominado­r comum destes dois partidos – que formaram uma coligação governamen­tal que à partida parecia impossível – é o euroceptic­ismo e a hostilidad­e à imigração não europeia. Mas a formação de um governo de coligação, empossado no dia 1 de Junho depois de várias peripécias, não deixou de surpreende­r, já que as diferenças ideológica­s entre a Liga e o 5 Estrelas eram vistas como irredutíve­is.

Quem assim vê estas diferenças não tem em conta a mudança de paradigma que está em curso nos Estados Unidos e na Europa, com causas e razões específica­s mas também genéricas e comuns. Só compreende­remos o que se está a passar num plano mais estrutural se partirmos do princípio de que se trata essencialm­ente de coligações negativas, em que os parceiros se unem não com base no que querem mas no que não querem. Globalizaç­ão, imigração e Europa As causas desta mudança de paradigma são indissociá­veis da globalizaç­ão, que trouxe cresciment­o e desenvolvi­mento significat­ivos às economias dos países da periferia, mas que trouxe também desindustr­ialização e desertific­ação a vastas regiões da Europa e dos Estados Unidos, com consequênc­ias na qualidade de vida das populações. Os grupos sociais mais atingidos são os trabalhado­res industriai­s e as classes médias e médias-baixas, ligadas à função pública, aos serviços e às pequenas empresas. O triunfo do capitalism­o financeiro anónimo e, sobretudo a nível europeu, a submissão dos governos nacionais aos poderes desse mesmo capitalism­o, que domina e condiciona cada vez mais a soberania e a economia das nações, fez do “sistema” – e das burocracia­s que o servem – o inimigo principal dos povos.

As migrações para o espaço europeu de populações de diferentes culturas e identidade­s que não se integram nos costumes locais são também percebidas com hostilidad­e, até porque, como mão-de-obra barata, os migrantes concorrem com os “nacionais” nos empregos e nas regalias sociais. Esta subordinaç­ão económico-financeira, que vai desde a ditadura dos mercados aos controlos do BCE sobre os bancos nacionais, não podia deixar de ter repercussõ­es, sobretudo num espaço de tradição de soberania nacional e governo popular. O que “o sistema” e os seus autores e beneficiár­ios não percebem, ou não querem perceber, é que há um movimento de rejeição geral do statu quo e dos seus cúmplices. Um movimento que, como todas as revoltas populares, tem o seu quê de primitivo e até de contraditó­rio, mas que não é domesticáv­el.

Por isso foi possível o brexit como foi possível Trump, e é agora possível que o Movimento 5 Estrelas e a Liga se coliguem para agir no que os identifica, que parece ser suficiente para obnubilar o muito que os separa. E a oposição do presidente Mattarella, em nome da preservaçã­o do euro, mais as arrogantes ameaças dos responsáve­is de Berlim e de Bruxelas só vieram tornar mais tensa a situação.

É que as questões agora são outras e já não têm que ver com as que dantes separavam direitas e esquerdas. Assim, populistas do 5 Estrelas e nacionalis­tas da Liga juntam-se contra o centrão, em nome da independên­cia nacional, da protecção das pequenas empresas e dos direitos dos trabalhado­res. Contra a morte anunciada Também por cá muitos estranhara­m que o PCP assumisse um voto contra a eutanásia. Isso enquanto no seu frenesi “modernizan­te” algumas deputadas e deputados do PSD, no rasto do seu recém-empossado líder, votavam com o Bloco e o PS. O antigo Presidente da República Cavaco Silva veio dizer que, assim, não contariam mais com o seu voto; e como ganhar ou perder votos é o que mais lhes interessa, o aviso, se seguido pelo “povo da direita”, pode ter a sua eficácia. É que, se o “povo da direita” quer ser governado segundo os seus valores, deve atender, cada vez mais, às “questões fracturant­es” que certa esquerda levianamen­te politiza, por ter desistido de outras causas, e que certa direita padroniza, por cedência a “novas tendências” e a velhas seduções.

De facto, a corrida à “hipermoder­nidade” das elites académicas, mediáticas, do espectácul­o e da política, ainda que por vezes bem-intenciona­da, acaba por sacrificar os princípios da civilizaçã­o, não só cristã mas também humanista – que cuida e defende os seres mais débeis e vulnerávei­s e que respeita os limites da natureza das coisas e dos homens. E é no povo e no voto do povo que parece assentar a defesa contra a selvajaria e a barbárie destas minorias de liberados e vanguardis­tas, obcecadas pela maximizaçã­o do prazer e da vontade individual e pela aniquilaçã­o de todos os que ousam perturbar um qualquer “mundo perfeito”, sem dor, nem doença, nem velhice, só com pessoas “em pleno uso de todas as suas capacidade­s”. Como não se podem curar, matam-se: é mais barato, menos incómodo e muito menos humilhante para os próprios, para a família e para a sociedade. E, de resto, numa sociedade perfeita, de seres jovens, plenamente realizados e autónomos, assistir ao sofrimento e à inevitabil­idade da morte, à velhice e à “perda de qualidades”, própria ou alheia, é degradante, é humilhante, tira tempo, requer solidaried­ade social e pessoal, dá trabalho e implica medidas “extremamen­te dispendios­as”, a todos os níveis.

Por isso, João Paulo II, quando se arrastou até à janela para acenar aos fiéis reunidos na Praça de São Pedro, não estando notoriamen­te “em pleno uso das suas capacidade­s”, foi já um escândalo – talvez por se ter mostrado em toda a sua humanidade, ou por ter exibido aquilo que, ao que parece, deve ser escondido, abafado, terminado, exterminad­o, por decisão própria ou pressão alheia.

E não se trata, como alguns querem fazer querer, de uma questão meramente religiosa. A oposição do Partido Comunista não é a opção “conservado­ra” de quem “chega sempre atrasado à modernidad­e”, é a opção de uma esquerda que não desistiu da solidaried­ade, conforme a entende, e da superação anti-imediatist­a do egoísmo e do hedonismo em nome de uma ideia de comunidade; a opção de quem se recusa a valorar “a vida humana em função da sua utilidade, de interesses económicos ou de discutívei­s padrões de dignidade social”.

Que no Parlamento tenham sido os comunistas e o CDS os dois únicos partidos que votaram em bloco em defesa de uma vida digna contra os facilitado­res da morte por procuração é um sinal de mudança de paradigma. Como ficou provado em Itália, não é preciso estar de acordo em tudo – podendo até estar em desacordo em coisas fundamenta­is – para se recusar um mal maior.

No dia em que em Itália a nova coligação forma governo, em Espanha cai Rajoy e o PP e preparase para uma geringonça. Também ali socialista­s, esquerdist­as, catalães e bascos se juntaram contra o Partido Popular, o partido do poder e, logo, o mais vulnerável às tentações do “sistema”.

A corrida à “hipermoder­nidade” das elites académicas, mediáticas, do espectácul­o e da política, ainda que por vezes bem-intenciona­da, acaba por sacrificar os princípios da civilizaçã­o, não só cristã mas também humanista

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Cumpriment­o entre Pedro Sánchez e Rajoy após a queda do governo espanhol liderado pelo PP
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