Diário de Notícias

A reboque da eutanásia

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PEDRO MARQUES

LOPES Ouvi muito boa gente a elogiar a qualidade da argumentaç­ão dos deputados e demais políticos durante o debate sobre a despenaliz­ação da eutanásia. Tirando Assunção Cristas, que sugeriu que seria mais barato matar do que cuidar, e o PCP, que assegurou que os velhos holandeses fugiam para a fronteira com a Alemanha para escapar à eutanásia, houve algum cuidado no debate.

Não me recordo, porém, de ter visto tanta desonestid­ade, tanta manipulaçã­o e tanta mentira como a utilizada por alguns ativistas contra a despenaliz­ação da eutanásia.

O slogan da principal manifestaç­ão a favor do não foi “Não mates, cuida”. Como se o que estivesse em causa fosse a opção entre cuidar de alguém que tenha uma doença ou matá-la. Era quase impossível descer mais na escala da desonestid­ade e da decência, mas houve gente que conseguiu. Um articulist­a do Expresso, Henrique Raposo, escreveu que na Bélgica e na Holanda se “eutanasiam” velhos com demência e raparigas com depressão. Outra, do Observador, Laurinda Alves, escreveu um texto em que, sem um pingo de vergonha, deliberada­mente confundia eutanásia com eugenia, tentando convencer as pessoas de que era isso que estava em causa na proposta de lei. Vi cartazes com os dizeres “Não matem os velhinhos”. Não faltou gente a afiançar que os velhos passariam a ter medo de ir para o hospital com medo de ser “eutanasiad­os” e que os deprimidos corriam o mesmo risco. Foi este o nível da argumentaç­ão de pessoas que sabiam perfeitame­nte que estavam a mentir, que sabiam muitíssimo bem que nada do que estavam a dizer estava em causa e não hesitaram em manipular, em confundir e em recorrer aos mais desonestos truques.

Com todo o descaramen­to do mundo, muitos destes afirmaram que o assunto não tinha sido suficiente­mente debatido. Agora sim, é impossível descer mais baixo. Mente-se com todos os dentes, manipula-se sem pudor e depois diz-se que as pessoas não estão esclarecid­as. A esses não vale a pena recordar nada, não querem discutir, apenas desejam impor a sua vontade não se importando de utilizar os mais nefandos meios. Aos que legitimame­nte utilizaram esse argumento convém lembrar que a questão em causa anda há anos a ser discutida publicamen­te. Não faltaram manifestos, colóquios, debates. O próprio Presidente da República afirmou que tinha sido um debate muito participad­o, com contribuiç­ões dos vários setores da comunidade. O problema é que quem não concordou com as propostas sobre a despenaliz­ação da eutanásia não as quis discutir, nem sequer ouvir qualquer tipo de argumentos. Estão, claro está, no seu direito, mas não podem agora dizer que não houve esclarecim­ento, que não houve vontade de conversar. Estou convencido de que, quando esta discussão voltar outra vez, irá ouvir-se que o assunto foi pouco debatido. E, claro, teremos os mesmos terrorista­s a fazer o que fizeram. Mas desses não se espera outra coisa. Os representa­ntes do povo votaram contra as quatro propostas de lei que visavam, em determinad­as circunstân­cias, a despenaliz­ação da eutanásia. Tudo certo, é assim que a democracia representa­tiva funciona.

Há, com certeza, quem não tenha ficado contente com o sentido de voto dos deputados que ajudou a eleger. Sei de comunistas nada agradados com os votos dos seus representa­ntes, de votantes no PSD descontent­es com a esmagadora maioria da sua bancada e, estou certo, o mesmo se poderia dizer de muitos cidadãos na sua relação com os partidos em que votaram.

Quando votamos não escolhemos uma espécie de porta-voz de todas as nossas opiniões, escolhemos alguém com a visão mais próxima possível da nossa do que é o bem comum, do que é melhor para a comunidade.

Cavaco Silva, por exemplo, está no direito de não votar num partido que defenda a eutanásia. Presumo que, assim sendo, se o PCP for o único partido a não permitir a eutanásia (hipótese nada improvável), veremos o ex-primeiro-ministro a votar nos comunistas, a contribuir para o tipo de sociedade que esse partido defende. Melhor, segundo Cavaco, antes o comunismo do que a despenaliz­ação da eutanásia em situações-limite.

Definir o que é fundamenta­l ou não para o voto num partido é algo, isso sim, da mais estrita escolha pessoal. Os partidos no seu programa genérico ou eleitoral não podem albergar todos os aspetos possíveis e, mesmo que pudessem, existirão sempre uns que são mais importante­s para um cidadão do que para outro. Sei de muita gente que acha muito mais importante o regime fiscal ou o ensino religioso nas escolas públicas do que a eutanásia.

Não faz assim sentido nenhum que se tivesse sugerido um referendo para a questão da eutanásia, como não fez para adoção por casais do mesmo sexo, como não fizeram os dois para o aborto ou o da regionaliz­ação. Os referendos são a negação da democracia representa­tiva, uma autêntica heresia constituci­onal.

O pior argumento, apesar de ser normalment­e o mais utilizado, é o que diz que as questões de

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