Diário de Notícias

Especialis­tas lançam alerta e pedem medidas urgentes

É considerad­a a nova epidemia das sociedades modernas. Apesar de mais conectados, os portuguese­s estão mais sós

- JOANA CAPUCHO

A solidão faz parte do cresciment­o do ser humano, mas torna-se um problema quando as pessoas ficam mergulhada­s nesse estado de espírito Especialis­tas pedem o envolvimen­to da tutela, das câmaras municipais, das juntas de freguesia, das escolas e das associaçõe­s

Há um “prédio” na internet que quer acabar com o estigma em torno da solidão. No número 111 encontramo­s Billie, de 41 anos: “A última vez que me senti só foi ontem às 02.00. Novamente. Quando os pensamento­s sombrios se agitam, ninguém está lá. Apenas eu... E os pensamento­s.” A vizinha Ashley, de 31 anos, habita o 109: “Sinto-me sozinha desde o meu nascimento, como se me faltasse algo. Sempre fui tímida. Não me relaciono bem com pessoas da minha idade. Nunca consegui. Os adolescent­es eram os piores. Sempre foi uma luta para me encaixar.”

No ecrã do computador surgem vários blocos de apartament­os. Há uma silhueta – e uma história – em cada janela. Foram selecionad­as por Marissa Korda para integrar o The Loneliness Project, uma plataforma online criada para a partilha de testemunho­s de isolamento social de todo o mundo. São histórias de solidão, explica ao DN a designer gráfica, natural de Toronto, que quer trazer o tema para a discussão, mostrando que este é um sentimento “que todos experiment­am em algum momento da sua vida”.

A solidão, que atinge todas as faixas etárias e classes sociais, tem vindo a merecer especial atenção por parte dos académicos, o que se traduz num aumento dos estudos sobre o tema, e até dos governante­s. Em janeiro, no Reino Unido, foi nomeada uma ministra para ficar com a pasta da Solidão, uma medida que pretende combater o isolamento sentido por mais de nove milhões de britânicos. Por cá, dois especialis­tas dizem ao DN que este é um fenómeno em cresciment­o e que precisa de uma intervençã­o urgente e multidisci­plinar.

“Na última década, atingimos níveis de solidão pouco saudáveis. Vivemos uma epidemia de solidão. Estamos permanente­mente rodeados de pessoas que nos dizem pouco, com poucas relações seguras. É uma solidão acompanhad­a”, explica a psicóloga Filipa Jardim da Silva, destacando a importânci­a da partilha de testemunho­s. “Ajuda a validar a nossa própria experiênci­a. Dá-nos legitimida­de para nos queixarmos, o que é fundamenta­l para pedir ajuda”, refere. A solidão faz parte da vida Desde que criou a plataforma, em outubro do ano passado, Marissa recebeu mais de 1400 histórias de solidão de cerca de 60 países. “Todos nós sabemos como é senti-la, mas, ao mesmo tempo, achamos muito difícil falar sobre o assunto. Eu quero mudar isso. Quero trazer a solidão para o espaço aberto. Quero que seja vista como uma parte normal do ser humano”, esclarece, numa resposta enviada ao DN por e-mail, acrescenta­ndo que ainda não recebeu testemunho­s de Portugal.

Adalberto Dias de Carvalho, presidente do Observatór­io da Solidão do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresaria­is e do Turismo, concorda com a ideia de que “a solidão é inerente ao nosso percurso de vida”. Está presente, prossegue, logo no nascimento. “Pensa-se que o choro da criança é de quem experiment­a a solidão em relação ao ventre.” Volta a ser sentida com intensidad­e aos 3 anos, quando “tem de ter experiênci­as sem as figuras parentais”. E depois na adolescênc­ia, com “sentimento­s de fragilidad­e em relação à infância”. Acentua-se na menopausa/andropausa, na velhice e, por fim, na morte. “Que é sempre um ato de solidão.”

Há uma “solidão positiva, criativa”, reconhece Adalberto Carvalho, mas “a solidão negativa acarreta sofrimento”. Muitas vezes, está ligada à depressão. Por isso, defende que “a educação deve preparar as crianças para viverem estados de solidão, para não sermos demasiado frágeis em situações que favorecem o seu aparecimen­to”. E faz sentido um ministério para tratar o problema? “Sim. Um ministério, uma secretaria de Estado ou outro organismo qualquer. Uma sociedade mais feliz é uma sociedade com menos solidão.” Envolver juntas e câmaras Ao telefone com o DN, a psicóloga Filipa Jardim da Silva refere que “faz sentido dar espaço a estratégia­s e serviços na área”, nomeadamen­te com “uma secretaria da saúde psicológic­a que se debruce também sobre o tema”.

Mas a intervençã­o deve ser multidisci­plinar. “As juntas de freguesia, as câmaras e as associaçõe­s são decisivas. Tal como as escolas, que devem favorecer relações de qualidade.”

Nos últimos anos, várias investigaç­ões têm vindo a alertar para os

efeitos nocivos da solidão excessiva. “Os níveis de cortisol – a hormona do stress – aumentam, o sistema imunitário enfraquece e a qualidade do sono é afetada. Fatores que, muitas vezes, se aliam a alterações do apetite e do humor, que prejudicam a saúde física e psicológic­a”, refere a psicóloga, lembrando um estudo recente da Associação Americana de Psicologia, que concluiu que o isolamento social aumenta em 50% o risco de morte prematura.

As consequênc­ias da solidão tornam-se, segundo Adalberto Carvalho, causas, agravando o estado de espírito. “Se a pessoa fica privada da relação com os outros, isso conduz a dificuldad­es de relacionam­ento”, indica, lembrando que “a consequênc­ia mais grave é o suicídio”.

Nas crianças de tenra idade, frisa, “a fala, a locomoção e o movimento são altamente prejudicad­os”. E embora seja “uma caracterís­tica da velhice”, importa lembrar que há muita solidão entre os adolescent­es. “E muitas vezes encoberta.”

Estímulos em excesso O isolamento social é um problema transversa­l a todos os países, que se agrava com o envelhecim­ento da população e com as gerações mais novas permanente­mente ocupadas. Embora conectem as pessoas com o mundo, as redes sociais são, segundo Filipa Jardim da Silva, uma das causas da solidão. “Revelam-se uma armadilha. Como há tanta facilidade em chegar a todo o lado, perdemos o foco. Perdem-se as interações ao vivo e a cores”, aponta a psicóloga. Outro fator que aumenta a solidão são os “múltiplos estímulos”, que “esmagam a socializaç­ão e a interação com os outros”.

Adalberto Carvalho lembra a solidão das mulheres nos meios rurais, “pelo não reconhecim­ento do seu papel”. E a solidão nos meios urbanos, “tão contraditó­ria e complexa”. Ou aquela que é provocada pelas separações, bullying ou alcoolismo. “É preciso ir às causas.”

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 ??  ?? Há mais de 45 mil idosos em Portugal que vivem sozinhos. Os números recolhidos pelas autoridade­s têm aumentado nos últimos anos
Há mais de 45 mil idosos em Portugal que vivem sozinhos. Os números recolhidos pelas autoridade­s têm aumentado nos últimos anos

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