Um monstro dos invernos futuros
(Sobre os 200 anos da publicação do livro Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley)
Há poucos meses passou nas salas de cinema portuguesas o filme Mary Shelley, da realizadora saudita Haifaa Al-Mansour, em que a atriz Elle Fanning representa o papel da jovem e luminosa escritora de 18 anos, que no recolhimento do lago Genebra, no verão de 1816, escreveu o livro que foi publicado, anonimamente, há 200 anos, com o título Frankenstein, ou o Prometeu Moderno. Filha de Mary Wollestonecraft, a pioneira de todos os feminismos, morta escassos dias após dar à luz a futura escritora, e de William Godwin, um filósofo quase libertário, Mary Shelley, casada com o poeta Percy Shelley, aceitara o convite de Lord Byron para o que prometia ser um verão tranquilo. O filme procura desenvolver uma interessante leitura biográfica e psicológica da génese do livro, que faz hoje parte da mitologia universal. Contudo, gostaria de chamar a atenção para outros dois aspetos que me parecem importantes. Um de contexto e outro de conteúdo.
O verão suíço revelar-se-ia uma desilusão. Aliás seria uma inesperada tragédia em todo o hemisfério norte. Frio, chuva, neve. Os britânicos chamaram a 1816 “o ano sem verão”. Mary Shelley foi forçada a trocar agradáveis passeios junto ao lago por dias inteiros num ambiente doméstico propício à escrita. Mary Shelley desconhecia as razões que levaram ao desaparecimento do inverno de 1816. No ano anterior, em Tambora, na Indonésia, ocorrera a mais poderosa explosão vulcânica desde que há registos históricos. Milhões de toneladas de cinza e poeiras ficaram durante muitos meses em suspensão na tropopausa. A temperatura mundial média desceu bruscamente 1º C. As colheitas de trigo do Canadá ficaram quase reduzidas a zero. A descida da produção agrícola atingiria muitos outros países, com motins causados pela fome na Grã-Bretanha, na França e a própria Confederação Helvética mergulhada num estado de emergência alimentar. Mary Shelley testemunhara, sem o saber, os efeitos de uma transformação climática abrupta que só pode ocorrer, tanto quanto sabemos hoje, por três razões: a) grandes explosões vulcânicas; b) deflagração de armas nucleares de grande potência; c) choque de meteoritos de grandes dimensões com a superfície terrestre.
O que Mary Shelley também desconhecia era a importância simbólica que a sua novela viria a conquistar. O drama do Dr. Frankenstein, e da sua horrenda, solitária e monstruosa criação, capturaria o destino fáustico profundo da nossa civilização. Com efeito, depois de quatro séculos a revolver o mundo físico, a exterminar espécies, a devastar florestas, a semear desertos, a desentranhar minerais, a poluir rios e oceanos, a humanidade parecia condenada – esse foi o insight profético que Mary Shelley teve mais de cem anos antes do romance Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley (1894-1963) – a procurar esgravatar dentro de si própria. A nova fronteira tecnocientífica levaria mais tarde ou mais cedo, à aventura de criar uma nova humanidade. Não um novo ideal de humanidade, mas um novo ser humano, de carne e osso, entre outros materiais...Para trás ficaram, irremediavelmente, os tempos da eugenia pueril, da ginástica e dos banhos frios, ou as crenças na conversão ética da humanidade. No mercado do futuro pós-humano que se avizinha, em vez do imperativo categórico, ficaremos inteligentes e potentes através de próteses e subtis manipulações genéticas. A longa solidão do filho de Frankenstein parece ter os dias contados.
Professor universitário