Diário de Notícias

Trabalho, habitação, saúde: as pedras no caminho da geringonça

Do Orçamento às leis laborais, das rendas à lei de bases da saúde, o quarto e último capítulo da geringonça – nesta legislatur­a, pelo menos – começa a escrever-se por estes dias.

- SUSETE FRANCISCO

Corria um debate parlamenta­r no final da última sessão legislativ­a quando o líder da bancada do PCP, João Oliveira, se dirigiu diretament­e à bancada do PS: “Ficaremos agora a saber, no momento da votação, quais são os dois lados em que se divide este hemiciclo.” Não demorou mais do que uns minutos a ver a bancada socialista levantar-se, em simultâneo com o PSD, para chumbar a proposta que estava a votos, enquanto a esquerda em bloco votava a favor.

O episódio serve para ilustrar a desconfian­ça com que, à esquerda do PS, se olha para a reta final da legislatur­a e para a posição dos socialista­s em matérias estruturan­tes para comunistas e bloquistas. E, se ninguém antecipa percalços de maior na aprovação do Orçamento do Estado para o ano, é previsível que o tom de confronto venha a subir uns quantos decibéis nos próximos meses. Ao ritmo da aproximaçã­o das eleições legislativ­as. E do número de vezes que o PS se levantar em simultâneo com o PSD nas votações. Até porque o que está em cima da mesa para os próximos meses não é coisa pouca para a esquerda. Sérgio Godinho resumiu-o em tempos numa frase – “paz, pão [leia-se trabalho], habitação, saúde, educação”. A paz não é para aqui chamada. O resto é o cardápio do que aí vem. O último orçamento da geringonça As negociaçõe­s para o Orçamento do Estado de 2019 deverão ser retomadas na próxima semana (ainda não há datas marcadas) e, por agora, todos os dossiês estão em aberto. A começar por uma das questões mais sensíveis – o descongela­mento dos salários da função pública, um tema que arrasta atrás de si o contencios­o que está em marcha com os professore­s, por causa da contagem do tempo de serviço. Ao longo dos últimos meses, o governo foi dando sinais de sentido contrário sobre a possibilid­ade de aumentar a função pública.

Em maio, António Costa dizia ao DN que “é mais importante contratar mais funcionári­os públicos do que aumentar os salários”, mas a esquerda não admite que uma destas medidas possa ficar pelo caminho. Essa é agora a expectativ­a: que o governo apresente a fórmula que permita conciliar aumentos e contrataçõ­es.

Mas há mais: BE e PCP exigem descidas no IVA da energia, uma questão que continua em aberto. Na área da Segurança Social, a principal reivindica­ção é comum a comunistas e bloquistas – um novo aumento extraordin­ário nas pensões, desta vez logo a partir de janeiro. Outra exigência comum: implementa­r até ao final da legislatur­a o novo regime de pensões antecipada­s, com a anulação dos cortes devidos ao fator de sustentabi­lidade para quem tenha 60 anos e 40 de descontos. Nesta matéria, o governo já falhou todos os prazos que tinha estipulado – e BE e PCP não se têm cansado de o lembrar. O grande embate à esquerda No Parlamento, os trabalhos em comissão regressam já na próxima semana e com aquela que promete ser – até mais do que o Orçamento – a maior frente de embate nos próximos meses: a legislação laboral. O retrato que ficou de julho não augura bons auspícios à esquerda, com a abstenção do PSD a viabilizar a aprovação do acordo assinado pelo governo na concertaçã­o social.

Em julho, o PS já pôs travão a fundo em várias propostas do BE e do PCP, que acabaram chumbadas pelo voto conjunto dos socialista­s e da direita – do aumento das indemnizaç­ões por despedimen­to ao acréscimo nos dias de férias. Entre o que foi aprovado há várias incógnitas. O PS deixou passar, por exemplo, restrições quanto ao trabalho temporário que vão muito além do que está previsto no diploma do governo. E aprovou também uma proposta do Bloco de Esquerda que facilita a contestaçã­o dos despedimen­tos em tribunal, uma medida mal recebida pelas associaçõe­s patronais.

Mas a chave da questão estará na proposta do executivo e, neste ponto, António Costa eVieira da Silva têm um problema para resolver em casa, antes de se preocupare­m com as bancadas mais à esquerda. O governo não quer alterações ao documento que saiu da concertaçã­o social, mas é o próprio grupo parlamenta­r socialista que não está pelos ajustes – e este não é o primeiro caso em que Carlos César faz finca-pé na autono-

Bloco de Esquerda vai propor a eliminação de várias normas da proposta do governo sobre as leis do trabalho. PCP diz que “a questão não está decidida” e promete luta dos trabalhado­res.

mia da bancada face ao executivo. Se não se conhece ainda a extensão das alterações que o PS vai propor, há uma que é garantida: onde o governo prevê o alargament­o do período experiment­al dos atuais 90 para 180 dias (para jovens à procura do primeiro emprego e desemprega­dos de longa duração), a bancada quer introduzir uma norma-travão que evite que as empresas possam recorrer a este mecanismo e dispensar os trabalhado­res a seguir. Não chega para os parceiros da geringonça. Os bloquistas, diz o deputado José Soeiro, vão propor a simples eliminação daquela norma – e de várias outras. O PCP também avisa que “a questão não está decidida” – “os trabalhado­res irão prosseguir a luta pela revogação dessas normas”, respondeu o partido ao DN. E além do pão, a saúde e a habitação Ao trabalho, junta-se a saúde e a lei das rendas. Para a esquerda, as propostas do governo avançadas neste último campo (em que se destacam os benefícios fiscais ao arrendamen­to de longa duração ) são insuficien­tes. Na saúde desenha-se um embate entre a lei de bases que sairá do grupo de trabalho liderado por Maria de Belém Roseira e a proposta do BE, que tem origem no trabalho desenvolvi­do por António Arnaut e João Semedo (ambos falecidos nos últimos meses). Em risco de ver o projeto ser chumbado, os bloquistas baixaram-no sem votação, em junho, um compasso de espera numa matéria em que também há divisões entre os socialista­s.

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Catarina Martins e Jerónimo de Sousa prometem dar luta ao governo na legislação laboral, naquela que deverá ser a maior frente de embate à esquerda nos próximos meses.
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