Quem fica faz contas aos zeros. Quem parte enfrenta desconfiança dos vizinhos regionais
Hiperinflação Maduro lançou o bolívar soberano e a cada dia faz novos anúncios, como o incentivo à compra de lingotes de outo. Enquanto isso, continua o êxodo dos venezuelanos.
Em 2008, o já falecido presidente venezuelano Hugo Chávez tirou três zeros ao bolívar e nasceu o bolívar forte. Agora, dez anos depois, com a hiperinflação sem fim à vista e com previsões de que pode chegar a um milhão por cento, o seu sucessor, Nicolás Maduro, tirou cinco zeros ao bolívar forte para criar o bolívar soberano. Mas, avisam os economistas, se a inflação continuar ao mesmo ritmo, as novas notas vão estar obsoletas dentro de meses. Enquanto uns venezuelanos fazem as contas aos zeros, outros optam por sair – já foram 2,3 milhões desde 2004 –, levando a crise para os outros países da região.
Maduro culpa os EUA, a Colômbia e a oposição venezuelana pela guerra económica e, para fazer face ao problema, lançou o Plano de Recuperação Económica, que entrou em força nesta semana. A principal medida foi a criação do bolívar soberano, assim como o aumento do salário mínimo: de três milhões de bolívares fortes para 180 milhões, o que, retirando cinco zeros, significa 1800 bolívares soberanos, o equivalente a 30 dólares. Mas os bancos têm limites para os levantamentos diários e há máquinas multibanco que disponibilizam mais dinheiro que outras, obrigando a percorrer várias até encontrar a melhor solução. Nas lojas, pagar em dinheiro sai mais barato do que com cartão.
Em paralelo, Maduro equiparou a nova moeda ao petro, uma criptomoeda que é apoiada por algumas das maiores reservas de petróleo do mundo e que, por sua vez, está ligada ao preço de um barril desse ouro negro. Um petro é igual a 60 dólares, que é igual a 3600 bolívares soberanos. Mas, segundo uma investigação da Reuters, o petro não parece estar em lado nenhum – apesar de o presidente alegar que já conseguiu angariar 3,3 mil milhões de dólares com a criptomoeda e que esta está a ser usada para pagar as importações.
Entretanto, as novidades surgem a cada dia: num dia é anunciado que o acesso online às contas dos bancos venezuelanos vai ser bloqueado caso os clientes não notifiquem o banco quando viajam para o estrangeiro; noutro, é decretado que as remessas da diáspora venezuelana só podem entrar através das casas de câmbio oficiais e não por transferências diretas. Num terceiro dia, Maduro convida os venezuelanos a investirem na compra de pequenos lingotes e certificados de ouro, para incentivar a poupança; e no seguinte anuncia que o IVA vai subir de 12% para 16%, ficando isentos os medicamentos ou alimentos. Oposição sem solução São inúmeros os exemplos de governos que caíram por causa de crises económicas, mas Maduro mantém-se firme no poder, com um novo mandato de cinco anos recém-conquistado em maio – numas eleições rodeadas de problemas e cuja legalidade não foi reconhecida pela comunidade internacional. A oposição, cuja união não conseguiu resistir aos problemas, tenta resistir à perseguição governamental, intensificada após a tentativa falhada de assassínio do presidente, recorrendo a drones armadilhados, há menos de um mês.
“Por um lado, um governo que acredita que a estabilização económica é decretada, sem mudar o modelo primitivo que a destrói. Por outro lado, uma oposição que acredita que escrevendo insultos e ameaças, sem articulação, propostas, líder ou ação, muda o governo. E, no meio, um país fodido”, escreveu Luis Vicente León, presidente da Datanálisis e analista político venezuelano, no Twitter. Êxodo regional A crise venezuelana já saltou entretanto fronteiras, juntamente com os 2,3 milhões de venezuelanos que deixaram o país desde 2014, num problema que as Nações Unidas dizem estar próximo da crise que se viveu no Mediterrâneo. Os mais pobres e desesperados, sem dinheiro para o bilhete de avião ou de autocarro, percorrem as estradas a pé, à procura de melhores condições de vida noutros países da região. “Não temos passaporte, mas voltar à Venezuela não é opção. Seria voltar à miséria”, referiu Javier Caballero, de 21 anos, que a agência Reuters encontrou a caminho do Peru.
Equador, Colômbia e Peru, reunidos nesta semana, assumiram o compromisso de manter as portas abertas aos venezuelanos, pedindo a Caracas que facilite a emissão de documentos de identificação, para permitir as viagens. Além disso, os três prometendo fortalecer as campanhas e medidas de sensibilização da população local para a chegada dos migrantes. Há inúmeros casos de denúncias de xenofobia com os venezuelanos que chegam.
Já o Brasil está a ponderar restringir as entradas de venezuelanos, através da fronteira do estado de Roraima, face às dificuldades das autoridades locais em lidar com todos. Numa entrevista à rádio, o presidente Michel Temer diz que de 700 a 800 entradas diárias, pode limitar esse número para cem ou 200. Isto horas depois de enviar os militares para a área, depois da revolta dos habitantes locais.
Em Portugal, o governo regional da Madeira estimava, em finais de julho, que 4500 imigrantes tivessem regressado à região desde 2016, estimando-se que a comunidade na Venezuela seja de 400 mil (ascendendo a mais de um milhão quando são contabilizados os lusodescendentes). Nesta semana, o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, pediu para não transformar a crise num “tema de luta partidária”.