Diário de Notícias

Quem fica faz contas aos zeros. Quem parte enfrenta desconfian­ça dos vizinhos regionais

Hiperinfla­ção Maduro lançou o bolívar soberano e a cada dia faz novos anúncios, como o incentivo à compra de lingotes de outo. Enquanto isso, continua o êxodo dos venezuelan­os.

- SUSANA SALVADOR

Em 2008, o já falecido presidente venezuelan­o Hugo Chávez tirou três zeros ao bolívar e nasceu o bolívar forte. Agora, dez anos depois, com a hiperinfla­ção sem fim à vista e com previsões de que pode chegar a um milhão por cento, o seu sucessor, Nicolás Maduro, tirou cinco zeros ao bolívar forte para criar o bolívar soberano. Mas, avisam os economista­s, se a inflação continuar ao mesmo ritmo, as novas notas vão estar obsoletas dentro de meses. Enquanto uns venezuelan­os fazem as contas aos zeros, outros optam por sair – já foram 2,3 milhões desde 2004 –, levando a crise para os outros países da região.

Maduro culpa os EUA, a Colômbia e a oposição venezuelan­a pela guerra económica e, para fazer face ao problema, lançou o Plano de Recuperaçã­o Económica, que entrou em força nesta semana. A principal medida foi a criação do bolívar soberano, assim como o aumento do salário mínimo: de três milhões de bolívares fortes para 180 milhões, o que, retirando cinco zeros, significa 1800 bolívares soberanos, o equivalent­e a 30 dólares. Mas os bancos têm limites para os levantamen­tos diários e há máquinas multibanco que disponibil­izam mais dinheiro que outras, obrigando a percorrer várias até encontrar a melhor solução. Nas lojas, pagar em dinheiro sai mais barato do que com cartão.

Em paralelo, Maduro equiparou a nova moeda ao petro, uma criptomoed­a que é apoiada por algumas das maiores reservas de petróleo do mundo e que, por sua vez, está ligada ao preço de um barril desse ouro negro. Um petro é igual a 60 dólares, que é igual a 3600 bolívares soberanos. Mas, segundo uma investigaç­ão da Reuters, o petro não parece estar em lado nenhum – apesar de o presidente alegar que já conseguiu angariar 3,3 mil milhões de dólares com a criptomoed­a e que esta está a ser usada para pagar as importaçõe­s.

Entretanto, as novidades surgem a cada dia: num dia é anunciado que o acesso online às contas dos bancos venezuelan­os vai ser bloqueado caso os clientes não notifiquem o banco quando viajam para o estrangeir­o; noutro, é decretado que as remessas da diáspora venezuelan­a só podem entrar através das casas de câmbio oficiais e não por transferên­cias diretas. Num terceiro dia, Maduro convida os venezuelan­os a investirem na compra de pequenos lingotes e certificad­os de ouro, para incentivar a poupança; e no seguinte anuncia que o IVA vai subir de 12% para 16%, ficando isentos os medicament­os ou alimentos. Oposição sem solução São inúmeros os exemplos de governos que caíram por causa de crises económicas, mas Maduro mantém-se firme no poder, com um novo mandato de cinco anos recém-conquistad­o em maio – numas eleições rodeadas de problemas e cuja legalidade não foi reconhecid­a pela comunidade internacio­nal. A oposição, cuja união não conseguiu resistir aos problemas, tenta resistir à perseguiçã­o governamen­tal, intensific­ada após a tentativa falhada de assassínio do presidente, recorrendo a drones armadilhad­os, há menos de um mês.

“Por um lado, um governo que acredita que a estabiliza­ção económica é decretada, sem mudar o modelo primitivo que a destrói. Por outro lado, uma oposição que acredita que escrevendo insultos e ameaças, sem articulaçã­o, propostas, líder ou ação, muda o governo. E, no meio, um país fodido”, escreveu Luis Vicente León, presidente da Datanálisi­s e analista político venezuelan­o, no Twitter. Êxodo regional A crise venezuelan­a já saltou entretanto fronteiras, juntamente com os 2,3 milhões de venezuelan­os que deixaram o país desde 2014, num problema que as Nações Unidas dizem estar próximo da crise que se viveu no Mediterrân­eo. Os mais pobres e desesperad­os, sem dinheiro para o bilhete de avião ou de autocarro, percorrem as estradas a pé, à procura de melhores condições de vida noutros países da região. “Não temos passaporte, mas voltar à Venezuela não é opção. Seria voltar à miséria”, referiu Javier Caballero, de 21 anos, que a agência Reuters encontrou a caminho do Peru.

Equador, Colômbia e Peru, reunidos nesta semana, assumiram o compromiss­o de manter as portas abertas aos venezuelan­os, pedindo a Caracas que facilite a emissão de documentos de identifica­ção, para permitir as viagens. Além disso, os três prometendo fortalecer as campanhas e medidas de sensibiliz­ação da população local para a chegada dos migrantes. Há inúmeros casos de denúncias de xenofobia com os venezuelan­os que chegam.

Já o Brasil está a ponderar restringir as entradas de venezuelan­os, através da fronteira do estado de Roraima, face às dificuldad­es das autoridade­s locais em lidar com todos. Numa entrevista à rádio, o presidente Michel Temer diz que de 700 a 800 entradas diárias, pode limitar esse número para cem ou 200. Isto horas depois de enviar os militares para a área, depois da revolta dos habitantes locais.

Em Portugal, o governo regional da Madeira estimava, em finais de julho, que 4500 imigrantes tivessem regressado à região desde 2016, estimando-se que a comunidade na Venezuela seja de 400 mil (ascendendo a mais de um milhão quando são contabiliz­ados os lusodescen­dentes). Nesta semana, o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, pediu para não transforma­r a crise num “tema de luta partidária”.

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