Diário de Notícias

O início do fim?

- Jogos sem Fronteiras por Bernardo Pires de Lima

A morte de John McCain silencia a oposição republican­a a Trump, reduz a pó o bipartidar­ismo na política externa e pode acelerar uma clivagem irreversív­el entre os Estados Unidos e a União Europeia. Portugal, como outras democracia­s, não está imune aos seus danos colaterais.

John McCain mostrou como a dignidade de uma vida não se esfuma na morte. Como defensor das democracia­s, em particular as europeias e a sua ligação aos interesses permanente­s americanos, escolheu Vladimir Kara-Murza, um opositor de Putin já por duas vezes envenenado, para transporta­r o seu caixão durante as cerimónias na Catedral de Washington. Kara-Murza é um dos principais rostos da oposição russa e lidera a fundação com o nome de Boris Nemtsov, outro dos líderes da oposição russa barbaramen­te assassinad­os, numa altura em que expunha a rede de corrupção do círculo de Putin. Com isto McCain diz-nos que a luta das democracia­s não pode estar reduzida a plebiscito­s, mas à defesa de um regime cuja natureza resida na profunda inviolabil­idade das liberdades políticas, sociais, de expressão e intervençã­o, e num respeito inegociáve­l com a separação de poderes. Foi isto que levou McCain a protagoniz­ar a defesa acérrima das transições democrátic­as na Europa e os alargament­os da NATO como a consolidaç­ão desse processo. Por isso nunca se esqueceu da Ucrânia nem da Geórgia, e foram constantes as iniciativa­s que levou a cabo no Senado para que o poder legislativ­o americano não deixasse cair a política de “porta aberta” da Aliança Atlântica. McCain não via a Rússia como um inimigo, se assim fosse não estava ao lado dos opositores do regime: foi, isso sim, um

dos primeiros políticos americanos a perceber como era perigoso confundir a Rússia com Putin, alertando para todos os anátemas que este representa e que, em último lugar, inibem a Rússia de caminhar para a saúde democrátic­a, como aliás merece.

Outra das figuras destacadas nas cerimónias fúnebres de McCain foi Joe Biden. Amigos de partidos diferentes, durante muitos anos colegas de Senado e participan­tes ativos na formulação das políticas externa e de defesa, a escolha de Biden sinalizou aquilo que McCain procurou tantas vezes seguir: uma lógica bipartidár­ia na política externa que desse músculo e influência decisivas aos EUA no mundo. Tal não queria dizer sintonia permanente, como não aconteceu durante os anos de Bill Clinton nas intervençõ­es na Somália ou na primeira fase da Bósnia até Srebrenica mudar tudo. Ou quando defendia o uso de um hard power avassalado­r uma vez decidida uma intervençã­o, como ficou patente no desalinham­ento com George W. Bush no Iraque e, sobretudo, na oposição visceral a qualquer política de tortura sobre prisioneir­os na luta antiterror­ista. Ou, ainda, quando divergiu de Obama na campanha de 2008 sobre a queda de importânci­a da Europa na hierarquia dos interesses globais da América. Só que para McCain, divergênci­a não significav­a tribalismo, e é por isso que na hora de se despedir olha com orgulho para Obama e profundo desprezo para Trump. Quantas vezes os piores inimigos não estão no mesmo partido. O legado De certa maneira, o legado de McCain pode ser visto a três níveis. Primeiro, o que tem vindo a mudar na política externa americana. Se, como referi, McCain é herdeiro de um internacio­nalismo hegemónico benigno da América no mundo, privilegia­ndo a dinâmica de democratiz­ação com mais ou menos músculo militar associado, sempre que possível numa linha bipartidár­ia (sob influência simultânea do senador democrata Henry “Scoop” Jackson ou dos presidente­s republican­os Ted Roosevelt e Ronald Reagan), hoje temos um travão nesta matriz do pós-Guerra Fria e uma condescend­ência gritante com déspotas de todo o mundo por parte de Trump, a ponto de pactuar com a fragmentaç­ão da Europa e felicitar o nacionalis­mo galopante.

Em segundo lugar, o que já mudou na política americana. Um homem digno, respeitado e carismátic­o como John McCain não está isento de erros políticos: a validação da subida de Sarah Palin à primeira linha política foi o passo que faltava para o partido republican­o legitimar o basismo desqualifi­cado para o exercício de poder. A cedência feita por McCain não só não lhe trouxe qualquer vantagem eleitoral em 2008 como acelerou a transforma­ção republican­a até Trump. Mesmo mostrando posteriorm­ente algum arrependim­ento, o antigo senador do Arizona não deixa de transporta­r um enorme paradoxo: acabou a combater aquilo que ajudou a elevar. Talvez não seja à toa que tenha sido, na última fase da sua vida, um dos poucos antitrumpi­stas republican­os, um ato de contrição política que já não foi a tempo de ver recompensa­do. Esta transforma­ção do GOP, que terá uma nova avaliação nas intercalar­es do próximo novembro, pode até ser temporaria­mente travada, mas dificilmen­te regressará a naturezas lincolnian­as que fizeram do partido uma “força pelo bem” na América.

Em terceiro lugar, o que vai mudar rapidament­e na política americana, nomeadamen­te na relação entre a Casa Branca e a bancada republican­a do Senado, protagonis­ta habitual da feitura da política externa, de segurança e de defesa americanas. John McCain presidia, até ao seu afastament­o por doença, ao comité das Forças Armadas, um núcleo estrutural na ligação entre legislador­es e decisores militares capaz de não só orientar uma lógica bipartidár­ia como travar os ímpetos de Trump. A morte do senador conduzirá ao lugar um outro completame­nte alinhado com o presidente americano. O mesmo se passa no comité de Relações Externas, presidido por Bob Corker, que não se recanditar­á em novembro, deixando também o lugar à mercê de um republican­o sintonizad­o com Trump. Se a maioria republican­a se mantiver no Senado, teremos muito menos travão às investidas de Trump que ali têm de passar. Por exemplo, as sanções à Rússia, ou qualquer linha de desmembram­ento da relação com as democracia­s europeias, cara à linha McCain no partido. O afastament­o transatlân­tico É sobre este quadro que os discursos desta semana sobre política europeia do presidente Macron e do ministro dos Negócios Estrangeir­os alemão, Heiko Maas, devem ser analisados. Alinhados e expostos a todos os seus embaixador­es no ativo, trouxeram duas linhas de ação estratégic­a pós-McCain. Primeira: Washington deixou de ser confiável. Se Merkel já o havia dito há alguns meses, Macron reiterou-o agora. Sem McCain e a sua linhagem no partido, fica mais difícil encontrar contrapeso­s à política disruptiva de Trump sobre a Europa. Segunda: em função disto, Paris e Berlim querem maior autonomia estratégic­a, quer no campo financeiro (para, por exemplo, contornar os danos económicos inerentes à retoma das sanções americanas ao Irão) quer no securitári­o, acelerando a iniciativa de defesa comunitári­a.

Dir-me-ão que isto não é novo no discurso do Eliseu e que já foi ensaiado em Berlim por Schroeder. Certíssimo. Mas nunca, em Washington, esteve um presidente que reduz a cinzas a integração europeia e rejubila com as vitórias dos nacionalis­tas em Varsóvia, Londres ou em Roma. O momento pede firmeza, mas também sensatez, pois o fosso euro-atlântico pode ser difícil de tapar. E isso tem consequênc­ias para a ordem internacio­nal, ocidental e para as democracia­s que têm assentado o seu modelo de alianças entre os EUA e o centro político europeu. É o caso de Portugal. Macron e Merkel podem não confiar nos EUA, mas não se podem esquecer de que em muitas capitais europeias o sentimento é igual em relação a Paris e Berlim. Valia a pena encontrare­m novos McCains do lado de lá.

O legado de McCain pode ser visto a três níveis. Primeiro, o que tem vindo a mudar na política externa americana. Em segundo, o que já mudou na política americana. E em terceiro lugar, o que vai mudar rapidament­e, nomeadamen­te na relação entre a Casa Branca e a bancada republican­a do Senado. Nunca, em Washington, esteve um presidente que reduz a cinzas a integração europeia e rejubila com as vitórias dos nacionalis­tas em Varsóvia, Londres ou Roma.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal