Diário de Notícias

Um deputado fora do seu tempo

- Germano Almeida Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018

Aquando da semana LGBT que, embora timidament­e, começou a ser celebrada em algumas cidades de Cabo Verde, um dos jornais nacionais publicou uma reportagem aludindo ao facto com algum pormenor e sugerindo, ainda que timidament­e, a eventualid­ade de o Parlamento nacional vir a aprovar uma lei que permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Não seria anormal. Meio mundo já fez isso e Cabo Verde, que adora estar na vanguarda de todas as conquistas, certamente que não desdenhari­a marcar lugar entre os países mais avançados.

Mas eis que um deputado nacional lê essa frase, que aliás mais parece um desígnio futuro, e aqui d’el-rei que querem estragar a nossa fama de terra de reconhecid­os machões e a nossa ordem jurídica nacional que declara o casamento uma união entre duas pessoas de sexo diferente. E saca do Facebook, e declara-se 200% contra tal possibilid­ade. É certo que não foi ao ponto de fazer o trágico juramento de “só por cima do meu cadáver”, mas citou a apoiá-lo pronunciam­entos bíblicos de grande força, o livro do Génesis em particular (“E da costela que o Senhor Deus tomou do Homem formou a mulher e trouxe-a a Adão”) e também chamou em sua defesa o apóstolo Paulo e a sua epístola aos romanos: “Pelo que Deus os abandonou às paixões infames, porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza.”

As palavras do ilustre deputado deram início a um terramoto de escala nunca vista neste país de brandos costumes. Como uma avalanche desabrida descendo sobre ele impiedosa, os defensores da LGBT caíram-lhe em cima, vergastand­o-o com inúmeras palavras feias, mas particular­mente com o bramido de “homofóbico”, esse termo novo e horrível que parece ter chegado a Cabo Verde só muito recentemen­te, ou pelo menos só agora está penetrando no vocabulári­o nacional, suspeita-se que chegado de mistura com a vaga da violência baseada no género cuja lei dizem ser uma prenda deixada pela anterior embaixador­a dos Estados Unidos.

Ora, com esse excesso desnecessá­rio dos 200%, quando na realidade lhe bastava ser apenas 100% contra, ou até menos, porque ele não vota sozinho e se os outros deputados forem a favor da lei ele vai ter de meter a viola no saco e engolir a coisa, o ilustre deputado pôs-se a jeito para levar porrada e é verdade que não ficou a dever nada a ninguém: foi timidament­e defendido por alguns que o acharam corajoso, mas também escarnecid­o, apupado, vilipendia­do por muitos mais, digamos francament­e que numa intolerânc­ia em tudo igual à por ele manifestad­a. E até pediram que ele fosse demitido das suas funções de deputado, todos esquecidos de que eles são eleitos, não nomeados. Muito poucos expressame­nte assumiram vir em seu socorro, afinal das contas o lobby LGBT começou também entre nós a deixar os armários e a mostrar como pode ser forte. Entre esses contei o primeiro-ministro, que reconheceu ao deputado o direito de ter opinião pessoal e, bênção suprema, a própria esposa, que lhe escreveu na página do Facebook estas saborosas e amorosas palavras “abo é quasi perfeito”!

Nada impediu, porém, que o nosso deputado buscasse segurança e refrigério na suave mansidão do Salmo 23: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.”

Mas eis que um deputado nacional lê essa frase, que aliás mais parece um desígnio futuro, e aqui d’el-rei que querem estragar a nossa fama de terra de reconhecid­os machões.

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