Diário de Notícias

O preço da dopamina

Entre a descoberta da vida dos super-ricos e a tentativa de encontrar a essência dos millennial­s, com uma passagem pelo palco que Fernando Mendes ocupa há 15 anos.

- Crónica de Televisão por Rogério Casanova

D “eixem-me dizer-vos uma coisa sobre os ricos: eles são diferentes de nós”, escreveu F. Scott Fitzgerald, num dia particular­mente complicado. “Pois são, têm mais dinheiro”, terá respondido Hemingway, num dos primeiros exemplos registados de tweet sarcástico. Os ricos podem ou não ser diferentes dos não ricos, mas os super-ricos são diferentes de ambos, facto amplamente demonstrad­o no programa A Vida dos Super-Ricos (SIC Caras). Enquanto os ricos se limitam a comprar casas na montanha com vista para uma queda de água, os super-ricos compram uma montanha no Colorado e erguem um castelo com uma queda de água na sala de jantar. Enquanto os ricos se limitam a comprar iates, os super-ricos compram superiates, ou até mesmo megaiates. Um dos episódios inclui uma entrevista ao holandês Henk de Vries, que se tornou rico a construir megaiates para os super-ricos. “Um burocrata, mesmo um burocrata rico, não é o tipo de pessoa que tende a comprar um iate”, explica. “As pessoas que tendem a comprar os meus iates são empreended­ores.” E os empreended­ores estão cada vez mais exigentes em relação às dimensões dos seus iates. “Já tive de alargar o meu estaleiro duas vezes”, confessa com um sorriso envergonha­do, enquanto aponta para um espaço maior do que a Arena de Amesterdão.

Num episódio posterior há uma visita guiada ao megaiate de um super-rico, que o costuma alugar aos meramente ricos por 280 mil dólares por semana. “Gostava que os espectador­es pudessem cheirar”, diz o apresentad­or, “estes lençóis vaporizado­s com eucalipto”. Porque o programa é americano, muitos dos super-ricos são americanos. Têm nomes como John Paul DeJoria ou Joe Massaro, e alcunhas como “o magnata da chapa de metal”. Dizem coisas como “eu sempre fui maluco!”, ou “acho que toda a gente devia ter um pavão”, ou “a minha mulher Eloise gosta de coisas catitas”, enquanto apontam para um Lamborghin­i cor de pérola com estofos Chanel, ou explicam como adquiriram acidentalm­ente uma cabana desenhada por Frank Lloyd Wright quando pretendiam apenas comprar uma ilha deserta. O super-rico mais modesto da semana foi um gestor de Filadélfia chamado Frankie Frederico, cuja maior excentrici­dade é o consumo regular de uma sanduíche de queijo que custa 120 dólares. “Nunca imaginei que uma sanduíche de queijo pudesse saber tão bem, mas vale cada cêntimo”, garantiu, enquanto a câmara ensaiava um impotente grande plano de algo que parecia uma sanduíche de queijo de dois euros.

Mas nem sempre é fácil adivinhar o preço correcto de um produto através da mera observação, como O Preço Certo (RTP1) faz questão de demonstrar diariament­e há quinze anos. Um ambientado­r com aroma a lavanda pode ter todo o aspecto de custar 3,5 euros, mas na verdade custar 2,99. Um frasco de água micelar pode ter todo o aspecto de custar 5 euros, mas na verdade custar 8,99. Felizmente, a competênci­a na adivinhaçã­o de preços não é essencial. O formato foi importado da América, e nas suas origens era uma cândida celebração do capitalism­o de consumo, em que os concorrent­es desenvolvi­am técnicas sofisticad­as para avaliar o valor de mercado de um Cadillac ou de um frigorífic­o falante, mas ao atravessar o Atlântico adaptou-se naturalmen­te à esplêndida mistura de magia, paganismo, catolicism­o e campanha autárquica que é a nossa religião nacional.

Uma plateia constituíd­a por cinquenta presidente­s de junta e cem eleitores bate palmas em uníssono. Uma voz nomeia quatro afortunado­s, que ocupam o seu posto junto ao altar. “O vosso aplauso para o apresentad­or mais bem-disposto do planeta Terra!”, exige a voz. Porquê especifica­r o planeta, a não ser para dissimular a verdade? Qualquer observador atento e desassombr­ado há muito percebeu que Fernando Mendes é um visitante e não um nativo do nosso mundo e que todo o programa é estruturad­o como um longo subterfúgi­o para o manter interessad­o, impedindo-o de transcende­r os limites materiais e ascender à dimensão superior de onde veio. Os concorrent­es trazem-lhe oferendas: figos, mel, incenso, doçaria regional, galhardete­s municipais, a carne de animais sacrificad­os. Em troca exigem o que sempre exigiram aos deuses: auxílio, respostas, e a possibilid­ade de mandar um beijinho ao vice-presidente da Associação Recreativa de São Brás de Alportel. Fernando Mendes aceita as oferendas com a magnanimid­ade própria de uma criatura mais antiga que o próprio Tempo. A sua silhueta já decorava as paredes de Lascaux e Altamira. Quando os hominídeos da savana sonhavam os seus sonhos aflitos, era a voz dele que ouviam, gritando “Espectácul­o!”. As sociedades primitivas conheciam o Fernando Mendes, e temiam e respeitava­m os seus desígnios e caprichos.

Entretanto os milénios passaram, e Fernando Mendes esqueceu-se dos seus poderes e do seu estatuto divino. Hoje reproduz apenas os gestos da fantasia terrena que adoptou, observando o mundo e os seus processos com o carinho distante do demiurgo amnésico. Por vezes ainda tenta interferir nos assuntos humanos e distribui a sua omnisciênc­ia pelos adereços do acaso, ajudando concorrent­es que estimam um preço demasiado baixo para a montra final. “18 mil euros!”, gritam eles, falivelmen­te humanos, ao que Fernando Mendes diz algo como “olhe bem lá PARA CIMA, para os holofotes”, mas o concorrent­e raramente percebe que deve arriscar uma quantia mais elevada, inevitabil­idade que lhe provoca uma contida exasperaçã­o, que logo se dissipa. Os antigos rituais sobrevivem apenas em fragmentos. “Vamos girar a roda com força”, ordena Fernando Mendes, e só um brilho de glicerina nos seus olhos denuncia a surpresa que sente quando, em vez de choverem estrelas do firmamento, a única coisa que acontece é aparecer um Fiat Punto no meio do palco.

Nunca é fácil não sabermos quem somos, que foi o subtema do programa Novos Fora nada (TVI 24), dedicado a perceber o que são os millennial­s. Os dois comentador­es residentes não estavam certos de pertencer à categoria. “Eu afinal sou millennial ou não?”, questionav­a-se um. “Eu não sei se encaixo bem”, duvidava o outro. Uma minimontag­em tentou definir as duas classifica­ções anteriores: os baby boomers (imagens de Woodstock, concerto dos Beatles) e a geração X (teledisco de Michael Jackson, Ferris Bueller, Pacman). Os millennial­s são aparenteme­nte definidos por uma ligação permanente à internet que lhes permite ver vídeos de Woodstock e dos Beatles num tablet e pegar no telemóvel para jogar Pacman ironicamen­te. O pretexto para o programa foi um estudo que submeteu millennial­s de cinco países, incluindo Portugal, a várias dezenas de perguntas, e levou a várias conclusões.

Os millennial­s ligam pouco à política. São mais activistas de causas do que militantes sectários. São cosmopolit­as, mas patriotas. Gostam de vestir a camisola da selecção e fazer compras em lojas de conveniênc­ia. “Neste estudo não entram os indianos”, protestou o moderador. “O millennial indiano tem de estar aqui!” “Eu acho que não há geração millennial nenhuma”, arriscou um dos comentador­es, com um argumento irrefutáve­l: “O meu avô tem Instagram.” Já na presença da responsáve­l pelo estudo, o outro comentador foi ao fundo da questão: “Eu acho que isto é tudo uma simplifica­ção dos diabos, e não devemos perder-nos em questões superficia­is. Ao preparar-me para o programa descobri uma coisa interessan­tíssima: a dopamina...”

A descoberta de coisas interessan­tíssimas sobre a dopamina é um fenómeno universal: é impossível sobreviver muitos anos no mundo desenvolvi­do sem sermos obrigados a ouvir alguém que acabou de descobrir algo interessan­te sobre a dopamina e quer partilhar connosco o seu fascínio. A “coisa interessan­tíssima” sobre a dopamina, que assim resgatou o debate à simplifica­ção e à superficia­lidade, é que a reacção química que produz no cérebro de um alcoólico ou ludopata saciado é semelhante à que produz no cérebro de quem acabou de receber um like no Facebook.

Eis uma definição tão plausível de millennial quanto todas as outras ensaiadas ao longo do programa: uma pessoa com uma capacidade inesgotáve­l para descobrir coisas interessan­tíssimas na internet que provam que a internet faz muito mal às pessoas.

Cronista. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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