Diário de Notícias

Einstein on the beach

- Péssima companhia por António Araújo

Roland Barthes chamou-lhe “órgão antológico”. E, como todos sabem, o cérebro de Einstein andou em bolandas até ir parar ao Kansas, onde repousou durante décadas em dois grandes vidros de conserva guardados numa caixa de cidra. Mas, antes disso, o proprietár­io daquele cérebro de antologia também viajou, e viajou muito. Foram publicados recentemen­te pela Universida­de de Princeton os diários da viagem que Albert Einstein fez em 1922-1923 pelo Extremo Oriente, pela Palestina e por Espanha (em 1925 fará outra grande excursão pela América do Sul, incluindo o Brasil). As biografias canónicas do físico prodigioso, da autoria de Abraham Pais e de Walter Isaacson, pouca atenção dedicam a este périplo einsteinia­no pela Ásia, mas fazem mal. A viagem, longa de quase meio ano, foi literalmen­te salvífica para o autor da teoria da relativida­de. Nas vésperas de partir, acedendo a um convite bem remunerado de um editor de Tóquio para fazer um tour de palestras pelo Japão, Einstein foi seriamente ameaçado de morte. No rescaldo do assassinat­o do judeu Walter Rathenau, ministro dos Negócios Estrangeir­os da República de Weimar, milícias armadas anti-semitas espalharam o terror em Berlim. Já então uma celebridad­e, com os jornais a noticiarem observaçõe­s de Eddington do encurvamen­to da luz que confirmava­m as suas teorias, Einstein foi escolhido como um dos alvos a abater. Em 1921, fizera uma digressão pelos Estados Unidos na companhia de Chaim Weizmann para recolher fundos para a planeada Universida­de Hebraica de Jerusalém e, apesar de nunca ter sido sionista, jamais renegou as suas origens judaicas, que agora lhe valiam ser ameaçado de morte pelos bandos de radicais de extrema-direita que, não muito depois, levariam Hitler ao poder. Albert Einstein chega a escrever a Marie Curie dizendo-lhe que iria demitir-se da Academia Prussiana de Ciências e anuncia a vários colegas a sua intenção de abandonar Berlim para sempre, projecto que só viria a concretiza­r em 1932. É com esse estado de espírito que embarca em Marselha rumo ao Oriente, na companhia da segunda mulher, Elsa, sua prima, com quem se casara poucos anos antes, em 1919. Em Marselha, confessa ao seu diário, as mulheres eram “voluptuosa­s”, observação anódina que agora muitos vêem como indesculpá­vel indício de misoginia. Desde que foram publicados há um par de meses, os diários de Einstein têm gerado escusada controvérs­ia. Muito por culpa do seu editor, Ze’ev Rosenkranz, que, porventura para aumentar o impacto da publicação, tem afirmado vezes sem conta que estes diários revelam um Einstein desconheci­do, xenófobo e racista, muito diferente do cientista bondoso, pacifista e tolerante que, anos depois, será um defensor dos negros americanos e classifica­rá o racismo como “uma doença dos brancos”. Quem ler os diários fica surpreendi­do com tanto alarido. Nele existem, é certo, muitos apontament­os íntimos – que, sublinhe-se, o seu autor nunca pensou publicar – em que Einstein fala sobre as gentes que ia encontrand­o, mas, francament­e, não é por dizer que as marselhesa­s eram “voluptuosa­s” que o podemos considerar um misógino, do mesmo modo que não é por escrever que os chineses eram “um povo diligente, imundo e obtuso” que o devemos tomar por racista. “Notei a pouca diferença que há entre homens e mulheres e não percebo que tipo de atracção fatal têm as mulheres chinesas, que enfeitiçam os homens a tal ponto que estes são incapazes de se defender contra a bênção extraordin­ária da descendênc­ia” – são comentário­s desastrado­s como este, que qualquer um faria nessa época (e ainda hoje), que têm servido para proclamar, em parangonas sensaciona­listas, que se fez uma descoberta histórica, a do Einstein-racista. A coisa já chegou até à Wikipedia, cuja entrada dedicada ao físico tem uma extensa nota sobre a sua xenofobia, a qual se baseia, pois claro, numa entrevista dada por Ze’ev Rosenkranz ao jornal Guardian. Santo Deus.

Em Hong-Kong, Einstein foi visitado por três professore­s liceais portuguese­s, cujos nomes não ficaram registados para posteridad­e, infelizmen­te. Dizem-lhe os docentes lusos – seriam de Macau? – que os chineses eram “incapazes de pensar logicament­e” e não tinham talento algum para as matemática­s, não contestand­o Einstein esse e outros estereótip­os. A prova de que estas observaçõe­s, em si mesmas, não revelam uma atitude racista está no facto de o seu autor – como todos nós – fazer generaliza­ções apressadas e corriqueir­as sobre todos os povos do mundo, brancos e não-brancos, falando também dos “horrendos europeus” ou descrevend­o os americanos como “amigáveis, autoconfia­ntes, optimistas e destituído­s de inveja”. Podemos admirar-nos com a vulgaridad­e dos lugares-comuns e dos clichés que povoam uma mente tão poderosa, um cérebro de antologia, mas, mesmo a esse propósito, quem ler as reflexões deWittgens­tein sobre a democracia e o poder ficará surpreendi­do com a vacuidade do seu pensamento político. Por outro lado, subsiste sempre a dúvida sobre a legitimida­de de publicar escritos como este, um diário de viagem cujo autor nunca pretendeu que fosse lido por outros. Imagine-se que Einstein tinha um caderninho intimíssim­o onde ia apontando pensamento­s só seus, inconfessá­veis: por exemplo, divagações eróticas prenhes de machismo e de misoginia. Seria legítimo publicá-lo? E, uma vez publicado, seria legítimo extrair daí grandes conclusões, fazer generaliza­ções sobre todo o seu carácter, a sua personalid­ade complexa?

A viagem termina em Espanha. O cientista fica encantado com Afonso XIII e com a rainha-mãe (o que não faz dele um monárquico...), avista-se com Ramón y Cajal e com Ortega y Gasset, admira os quadros de Goya no Prado, vai até ao Escorial. Desloca-se a Barcelona e a Saragoça, recebe os habituais doutoramen­tos honoris causa. A 6 de Março de 1923 está em Toledo, “um dos melhores dias da minha vida”. A cidade parece-lhe “um conto de fadas”. Deambula pela catedral e pela sinagoga, contempla os montes circundant­es, deixa-se inebriar pelo pôr-do-sol junto ao Tejo. Fascina-o, acima de tudo, O Enterro do Conde de Orgaz. “Um quadro magnífico de El Greco numa pequena igreja (o enterro de um nobre) é das imagens mais profundas que alguma vez vi”. “Um dia maravilhos­o”, conclui.

Entretanto, em 10 de Novembro de 1922, fora enviado um telegrama para a residência do casal Einstein em Berlim. Ninguém estava em casa para o receber. Vinha de Estocolmo, anunciava a atribuição do Nobel. Com o premiado ausente no estrangeir­o, o galardão será entregue ao embaixador alemão na Suécia. Einstein esperava ganhá-lo há muito, e até dissera à primeira mulher, por alturas do divórcio, que ela ficaria com o dinheiro do Nobel no dia em que lho atribuísse­m. Deram-lhe a notícia quando estava em viagem. Os diários, porém, nem sequer o mencionam, como se fosse coisa indigna de registo, pormenor de somenos em comparação com as voluptuosa­s de Marselha ou as cores do Greco. Um génio, em suma.

Historiado­r. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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