Diário de Notícias

Os porta-vozes sub-reptícios ficam gulosos

- Ferreira Fernandes

Ojornal satírico francês Le Canard Enchaîné tem uma célebre segunda página em que conta o que se diz nas reuniões semanais do governo. E publica entre aspas o que se diz. Por exemplo, o ministro das Finanças disse que “assim não dá”, ao que o primeiro-ministro contrapôs “ai aguenta, aguenta” e o Presidente bateu com o punho na mesa e disse “é assim, ou vai ou racha!”... O exemplo que dou é inventado, mas ilustra bem uma típica notícia do Canard. Geralmente meia dúzia de linhas, seguida de uma dezena de outras pequenas notícias similares, com citações aspeadas, isto é, atribuídas sem dúvida a alguém. Há décadas que o jornal faz isso, com raríssimos desmentido­s.

Como as testemunha­s diretas de tais frases são geralmente uma multidão – um Conselho de Ministro é coisa para uma dúzia de assistente­s –, o compromiss­o público do jornal é arriscado. Afinal, um governo costuma ter uma identidade forte e poderia acontecer um desmentido unânime de todos os participan­tes na tal reunião, deixando o jornal embaraçado. O facto, porém, é que isso quase nunca aconteceu. Porquê? Por trabalho, por respeito pelos leitores e por uma certa e determinad­a pru- dência que só referirei no fim desta crónica. Le Canard Enchaîné construiu com a classe política uma relação extensa, pelo número de informador­es, e responsáve­l – ai do ministro que minta sobre o que aconteceu na reunião, colocando o jornal em falso.

Admite-se, claro – é um dos pressupost­os do acordo –, que o informador só passe a dica que lhe convém. Ou que prejudique um concorrent­e que lhe faz sombra (deve acontecer com os secretário­s de Estado em relação ao ministro que lhes tapa a ascensão). Por isso o jornal alarga as fontes onde bebe, de forma a que os factos – no caso, a reunião governamen­tal – não sejam apresentad­os de viés. A insistênci­a do anonimato das fontes fica assim justificad­a, como mal menor, pelo bem maior que fornece ao público uma informação que de outro modo não teria. Depois do acordo e a prática conseguido­s pelo Le Canard Enchaîné é com os informador­es (de esquerda e direita, de sucessivos governos), o jornal estendeu esse método às informaçõe­s internas sobre os vários partidos, embora com menos sucesso, porque o interesse do leitor também é menor.

Esse salutar serviço prestado pelo jornal satírico francês tem uma versão portuguesa que não é satírica (irónica, maliciosa, mordaz) mas, isso sim, é de sátiro. É a nossa mania do “segundo uma fonte que preferiu não dizer o nome, mas que garante que Fulano pensa que”. Isso acontecer uma vez é próprio do jornalismo, duas vezes é próprio do jornalismo, três vezes é próprio do jornalismo... Afinal, há coisas que por vezes só podem ser tornadas públicas se forem dadas, depois de devidament­e confirmada­s por outras fontes, sem um testemunho público.

O problema é quando essa anomalia legítima da informação – publicar, apesar de não haver testemunha­s identificá­veis – passa a ser o inevitável e único costume. Mais interessan­te ainda, quando o jornalista, ou o comentador, transmite sistematic­amente as vontades e pensamento­s deste ou daquele político, sem o citar mas dando a entender que é mesmo dele, acrescenta­do o truque de que a informação lhe chegou “de fonte autorizada”.

Tal como acontece com o que faz o Canard com a sua página 2, há um acordo com os informador­es. Claro que a “fonte autorizada” é o próprio político, que adianta uma hi- pótese do que pensa ou do que vai fazer, para testar as reações do público, dos adversário­s políticos e até dos correligio­nários. Mas, lá está, no caso do jornal francês, os informador­es são múltiplos e o jornal não está ao serviço deles. Entre nós, a prática deste tipo de informação torna-se um abuso cometido aos leitores ou aos telespecta­dores, num conúbio secreto entre o político e o jornalista ou o comentador. Afinal, o tal político talvez não pense assim, nem talvez já tenha decidido fazer aquilo, pelo menos por enquanto, só quis saber como ia ser recebida a “notícia”...

Se as reações forem más, o político sempre pode dizer “eu nunca disse isso”. E o jornalista, ou o comentador, sempre pode confiar no esquecimen­to coletivo sobre quem lançou o rumor. Ou no caso de haver gente com boa memória, esperar que quem a tem também é cínico e há de supor que foi o político que, entretanto, mudou de opinião. Em todo o caso, essa prática, tão difundida entre nós, confunde, perturba, faz descrer.

A única vantagem desta especifici­dade portuguesa é a suprema ironia que ela pode proporcion­ar. O político poderoso, que permitiu uma nebulosa à volta da sua relação com quem o invoca sem o nomear de forma clara, um dia, lê ou ouve o jornalista ou o comentador a citá-lo naquilo que ele nunca lhe disse. Como o apetite aumenta com o comer, aos porta-vozes sub-reptícios crescem-lhes as asas...

Um dia, é um supor, o poderoso político fica a saber que ele vai, sei lá, reconduzir alguém num cargo importante, quando, afinal, ele ainda anda a falar com tanta gente, a ver se toma uma decisão. Com essa gente ouvida, ele ora diz que está por isto, ora pelo contrário e, de repente, a voz que habitualme­nte lhe porta as intenções ganha autonomia e di-lo decidido e resoluto. A questão é, como é que se diz a uma fonte autorizada que ela não é tão autorizada quanto ela supunha? Ambíguo e perigoso compadrio...

Em tempo: Le Canard Enchaîné, além de todos os cuidados, aqui já contados, com que compõe a sua página 2, tem um outro cuidado na sua primeira página. Logo abaixo do título, o Canard escreve sempre: “Jornal satírico”. Satírico é uma intenção assumida e publicitad­a. Ficamos logo a saber que a sua maneira de dizer é uma certa forma de dizer. É um certo estilo que não dá em certas funções.

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