Diário de Notícias

Aniversári­o

- Nuno Artur Silva

Estás rodeada de família. Filhos, netos. São os teus anos, dizem-te. Dão-te prendas, há risos e sorrisos. É agradável. Parecem felizes e tu estás feliz por todos estarem felizes, como foi sempre... Por momentos, reconheces um ou outro... a tua filha, o teu filho... não tens a certeza. Há umas crianças a correr de um lado para o outro, os teus netos, dizem-te...

Falta gente, falta alguém... Procura-los com o olhar, mas não os vês... Onde estão?

O Tonecas, o teu marido, onde se meteu? Porque não veio? São os teus anos e ele devia estar aqui...

Quando é que ele chega? – perguntas – Porque não chegou ainda? Porque é que está aqui esta gente toda? Estás no meio de uma festa, mas estas pessoas... quem são?.

A Isabel, ah, a Isabel está aqui, sim, sei quem tu és... – dizes – ... és a minha filha. A tua filha.

Dizem-te que estás no Algarve. Está bom tempo, é verão, está sempre bom tempo no dia dos teus anos, fazer anos em agosto é ter sempre uma festa no verão...

Juntar a família toda. Sim, lembras-te muito bem das tuas festas de anos no meio das férias...

Lembras-te quando passávamos as férias no Tramagal, na casa da avó Maria e do senhor Calado, o senhor Calado, ris-te, lembras-te deles? – perguntam-te – ... e do tio Mário e da tia Celeste. A família toda junta.

Lembras-te, claro. Íamos tomar banho no rio, fazíamos um piquenique. Regressáva­mos ao fim da tarde.

O pai e o tio passavam pela estação de comboios para ver se tinham chegado os jornais da tarde, levavam-me com eles, eu adorava... era um miúdo, diz ele, quem é este?... Este é o teu filho, o Nuno. Sou o teu filho, o Nuno, diz ele.

Ah, o Nuno, pois, dizes tu – És um homem, agora. Estás um homem. Eras um miúdo. Pareces o Tonecas. Não és o Tonecas?

Não, mãe, sou o Nuno, diz ele, é parecido com o Tonecas.

Agora todos tiram fotografia­s, muitas fotografia­s. Para recordar o dia, dizem. Estão todos com os telemóveis, já não há máquinas fotográfic­as. Depois ficam a ver as fotos, logo a seguir, mostram-te. Ficámos bem, dizem, ficámos bem...

Mostram-te fotos doutros dias, de aniversári­os anteriores, explicam-te que agora está tudo ali, é só procurar, está tudo nos telemóveis, nos computador­es... É só procurar. Está tudo na nuvem, dizem, na nuvem... Não percebes o que eles querem dizer, mas não importa, eles estão todos contentes e tu gostas de os ver contentes.

Vês as fotos, gostas de as ver, mas cansas-te porque não reconheces quase ninguém naquelas fotos. Preferes os álbuns antigos, os que têm as fotos do teu tempo... do tempo em que te lembras de tudo, em que te lembras de todos.

Já morreram, já morreram todos... devem ter morrido... só restas tu, desse tempo... Mas lembras-te deles todos ao ver essas fotografia­s. E lembras-te de ti, nessas fotografia­s, lembras-te de ti, quando eras nova...

Onde estão esses álbuns? Gostavas de os ver agora... Essas fotografia­s de papel amarelado, coladas com cola branca, com as datas e os sítios escritos à mão, por baixo... onde estão esses álbuns? Estavam lá em casa.

Gostavas de ver essas fotografia­s, fazem-te lembrar tanta coisa, tanta coisa que fizeste, tanta coisa que aconteceu...

Estás aqui sentada nesta cadeira, mal te consegues levantar, quase não andas, olhas à tua volta, não reconheces ninguém...

De vez em quando vêm falar contigo, perguntam se estás bem, se precisas de alguma coisa. Dão-te água, sumos, fruta, bolos... É bom, sabe bem. São simpáticos, os teus filhos, tiveste sorte, são uns bons filhos...

Não tens a certeza quais são os teus filhos, mas aqui são todos simpáticos...

O que será este sítio? Parece que estás a sonhar... estás a ver gente a rir, crianças a brincar no jardim, há um cão... uma cadela? É uma cadela, e gosta de ti, está sempre ao pé de ti... Mas isto tudo parece... que tudo está assim... irreal... como se não estivesse cá, tudo parece estar mais ou menos a desvanecer...

Quando é que voltamos para casa? Agora gostava de voltar para casa, dizes. O Tonecas deve estar preocupado por eu não estar em casa...

Dizem-te que a tua casa agora já não é aquela, que aquela casa já não existe...

Estão enganados. Estão a enganar-te. Claro que aquela casa existe. É onde tu moras. Onde mora a tua família.

Aqui, agora é só um sonho que estás a ter neste momento na tua cama, com o teu marido ao lado, numa das muitas noites dos dias da vida da tua família naquela casa. Estás a sonhar com os teus futuros netos e bisnetos e contigo no futuro, se calhar... É isso, de certeza, é um sonho...

Agora cantam-te os parabéns, tiram mais fotografia­s, muitas fotografia­s, todos tiram uma fotografia contigo. Dão-te muitos beijos e abraços. É agradável.

Mas onde estão os teus filhos agora? São estes? E o Tonecas, onde se meteu?

Estás no meio de uma festa rodeada de estranhos...

Agora tem sido assim. Estás dependente deles, da simpatia deles, são eles que te levam e trazem. Mas já estás habituada, habituas-te sempre.

Estás aqui sentada, presa a este presente, como a esta cadeira. Mas, na verdade, não estás aqui... pouco a pouco, começas a perceber...

Onde estás, cada vez mais, onde tu estás é naquelas fotografia­s daqueles álbuns antigos, nas memórias que elas te trazem doutros tempos...

Nessas memórias tu libertas-te do teu corpo preso a este presente, nessas memórias tu estás livre e és tu outra vez, és tu, e começas agora a ter sido feliz, tão feliz...

“A memória é o sítio onde uma coisa acontece pela segunda vez.” Paul Auster Nessas memórias tu libertas-te do teu corpo preso a este presente, nessas memórias tu estás livre e és tu outra vez, e começas agora a ter sido feliz, tão feliz...

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