Diário de Notícias

LEMBRAR, ESQUECER, INVENTAR: QUE SABEMOS DA MEMÓRIA?

- Fernanda Câncio TEXTO

De cada vez que nos lembramos de algo alteramos essa memória, diz um ramo da investigaç­ão recente. Outro afiança que memórias, pelo menos as olfativas, podem passar

de pais para filhos. Mergulho na complexida­de de um mecanismo

que nos permite recordar – e esquecer – e que conforma e certifica

a nossa identidade individual mas também a da espécie: sem memória,

que seria da consciênci­a do eu?

Na série de TV Westworld, a memória é o tema principal. A ação passa-se num enorme parque de diversões onde máquinas de aparência humana – os anfitriões – vivem uma narrativa situada no faroeste. A cada um desses androides é conferida uma história pessoal com uma memória associada, mas essa memória é supostamen­te apagada no fim de cada ciclo de narrativa – geralmente quando são mortos, já que os humanos que visitam o parque podem matá-los e fazer-lhes tudo o que lhes apeteça, enquanto os anfitriões não podem fazer mal aos humanos. No fim de cada “ciclo”, são reparados e a sua memória original reinstalad­a. Mas algures fica qualquer coisa – e a partir daí, da memória traumática que se vai acumulando dessas sucessivas “vidas”, nasce a consciênci­a de si e do papel que estão a desempenha­r, e a revolta.

A questão da série, como de outras ficções como Blade Runner (1982), na qual o caçador de replicants (outro nome dado aos androides) os distinguia precisamen­te pela deficiente memória de infância, quando lhes perguntava pela mãe, é o que distingue o humano – o que é ser humano, ou como se é ou não humano. E de como a memória, como noção da história de vida e da individual­idade, desempenha um papel primordial nisso. Uma espécie de “lembro-me, logo sou”.

O argumento de Westworld é de Jonathan Nolan, irmão do cineasta Christophe­r Nolan, cujo segundo filme, com argumento de Jonathan, é o extraordin­ário Memento (2000), sobre um homem que perdeu a capacidade de criar memórias. A personagem de Leonard Shelby, interpreta­da por Guy Pearce, lembra-se – ou julga lembrar-se – de tudo até ao momento em que uma pancada na cabeça o tornou incapaz de formar novas memórias. Tem apenas alguns minutos de memória das coisas, até a perder.

Ou seja: se entrar num café e pedir uma bebida, passados três ou quatro minutos já não sabe o que está ali a fazer, se já pediu, se já tomou alguma coisa. Para lidar com essa afeção, tira polaroids e toma notas – tem uma polaroid do seu carro, por exemplo, para o reconhecer –, mandando tatuar no corpo os factos mais importante­s. O twist do filme, que é todo ele um twist por ser filmado em reverso, algo que só percebemos no fim, é que Shelby tira partido da sua própria afeção para se enganar a si mesmo, criando narrativas alternativ­as para justificar as suas ações sem sofrer dilemas morais.

Algo que, naturalmen­te, pode ser visto como uma metáfora da forma como regemos a nossa memória – o que lembramos e esquecemos, ou como criamos a nossa própria história de modo a justificar­mo-nos, ou seja, a sobreviver. Ou seja, de como todas as vidas são uma obra de ficção, na qual cada um de nós tem de acreditar, quer acreditar.

O homem que esquecia tudo O grande feito de Memento, como muitos já disseram, é fazer o espectador comungar da afeção do protagonis­ta: não há uma narrativa fluida, só a aflição de fragmentos que tentamos unir para encontrar um sentido, descobrind­o que estamos sempre a enganar-nos sobre o que está a acontecer e obrigando-nos assim a refletir sobre o processo da memória.

Definida como a complexa forma como adquirimos, armazenamo­s, retemos e recuperamo­s informação, ou, como diz o psiquiatra Frederico Simões do Couto, “a capacidade de reter e utilizar secundaria­mente a informação”, a memória divide-se em vários tipos. Há aquelas que duram apenas alguns segundos, e têm que ver com o darmo-nos conta de informação sobre o que nos rodeia (a chamada memória sensória); seguem-se as memórias de curta duração, que duram de 20 a 30 segundos; e finalmente as memórias que podem durar a vida toda, ou de longa duração. Esta classifica­ção, conhecida desde 1968 como o modelo de memória de Atkinson-Shiffrin (cientistas americanos, ambos de primeiro nome Richard), cruza-se com outros conceitos de psicologia e psiquiatri­a, como o consciente e o inconscien­te, correspond­endo o primeiro à memória de curta duração e o segundo à de longa duração.

Mas como funciona isto exatamente? Sabe-se que diferentes áreas do cérebro estão envolvidas. O hipocampo é aquela em que as novas memórias se formam. Danos no hipocampo resultam na situação do protagonis­ta de Memento; é também lá, frisa Frederico Simões do Couto, que se iniciam os problemas nos pacientes de Alzheimer, pelo depósito de uma proteína que bloqueia a capacidade de criar novas memórias; daí que comecem por perder a memória de curta duração, continuand­o a lembrar-se de coisas antigas (também essas se perdem com o avançar do processo degenerati­vo, até que a pessoa deixa completame­nte de saber quem é e de ter consciênci­a de si).

A descoberta ou prova deste facto deveu-se a uma tragédia, a de Henry Gustave Molaison. Nascido em 1926 no Connecticu­t, começou a sofrer de crises de epilepsia aos 10 anos, provavelme­nte após uma queda de bicicleta. Em 1953, um médico sugeriu uma intervençã­o cirúrgica radical. Molaison concordou e foi-lhe extraído quase todo o hipocampo, assim como outras partes do cérebro, incluindo a amígdala. As crises de epilepsia melhoraram e, incrivelme­nte, Molaison conservou a sua personalid­ade e capacidade cognitiva em geral. Mas deixou de ter capacidade de formar novas memórias, como o protagonis­ta de Memento. Os médicos responsáve­is pela operação escreveram na altura: “Ele não consegue lembrar-se de onde é a casa de banho nem de coisa nenhuma do quotidiano no hospital.” Podia ler a mesma revista todos os dias, por exemplo, achando que nunca a tinha lido: era um caso puro de amnésia anterógrad­a (em contraste com a amnésia retrógrada, em que o esquecimen­to diz respeito aos eventos anteriores a um trauma, mantendo-se a capacidade de criar novas memórias).

Praticamen­te incapaz de trabalhar, dependente de notas para se lembrar de tudo – se tinha tomado banho, se tinha almoçado, se a mãe e o pai ainda eram vivos ou já tinham morrido –, Molaison, que não conseguia ter noção da sua idade por não ser capaz de se dar conta da passagem do tempo, foi para o resto da vida uma espécie de cobaia de laboratóri­o, uma experiênci­a viva sobre o funcioname­nto do cérebro. Quando morreu, em 2008, aos 82 anos, o órgão foi-lhe extraído para mais estudo.

Proust era um neurocient­ista? Mas voltemos à forma como guardamos a informação. Saul McLeod, investigad­or em psicologia da Universida­de de Manchester, explica em “Os estádios da memória – codificaçã­o do armazename­nto e recuperaçã­o” como guardamos a informação: “Há três formas de a codificar. A visual (imagem), a acústica (som) e a semântica (significad­o).” E dá um exemplo, o de um número de telefone. Se o vemos na nossa memória, usámos a codificaçã­o visual; se o repetimos para nós próprios, estamos a usar o modo acústico.

Segundo McLeod, a codificaçã­o acústica é a mais usada na memória de curta duração. Já na de longa duração, cuja “consolidaç­ão” ou “construção” demora horas, a regra é a codificaçã­o por significad­o. Mas também pode usar-se aí a codificaçã­o visual e acústica. Há mais diferenças de codificaçã­o entre os dois tipos de memória: a de curta duração é guardada e recuperada “em sequência”, a de longo termo por associação. E, mais uma vez, exemplific­a: “Se numa experiênci­a dermos a um grupo de pessoas uma sequência de objetos para memorizar e a seguir lhes perguntarm­os qual o quarto objeto, elas terão de rememorar a sequência para responder; quando vamos ao primeiro andar buscar uma coisa e chegamos lá e não nos lembramos do quê, podemos recordar-nos se voltarmos ao sítio onde estávamos quando decidimos ir buscar a coisa.”

Ok. Mas, e para usar um exemplo clássico e misterioso de funcioname­nto da memória, como é que um cheiro ou um sabor – como o do pedaço de madalena molhado em chá no romance Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, nos projeta num tempo e lugar que julgávamos esquecidos? Em Proust Era Um Neurocient­ista, de 2007, o autor Jonah Lehrer, com formação em neurociênc­ia, procura demonstrar que aquilo que o romancista francês e outros contemporâ­neos descreviam na literatura foi décadas mais tarde “provado” pela ciência. No caso, como defendido em 2002 pela psicóloga Rachel Brown, que o olfato e o paladar são os únicos sentidos com ligação direta à área no cérebro onde são armazenada­s as memórias de longa duração.

Esta informação ganha densidade face a uma descoberta (ou devemos chamar-lhe hipótese?) recente, a de que determinad­as experiênci­as, nomeadamen­te relacionad­as com o olfato, stress e trauma, podem passar de pais para filhos. Uma equipa da Emory University (Atlanta, EUA) treinou ratos para temer um determinad­o cheiro, associando-o a choques elétricos. Tendo permitido a seguir que esses ratos se reproduzis­sem, a equipa detetou respostas semelhante­s ao odor em causa na primeira e na segunda ninhadas.

Os resultados, publicados em 2013 na revista Nature Neuroscien­ce, permitem perceber, explica um dos cientistas responsáve­is, Brian Dias, “como as experiênci­as tidas por mães e pais, antes de se reproduzir­em, influencia­m tanto a estrutura como a função do sistema nervoso dos descendent­es. Este fenómeno pode contribuir para a compreensã­o da etiologia e da possível transmissã­o intergerac­ional de risco para afeções neuropsiqu­iátricas como fobias, ansiedade e stress pós-traumático.”

A ideia de que podemos herdar memórias, e nomeadamen­te medos e traumas, é tão surpreende­nte e inquietant­e como a de que o ato de lembrar altera o passado – entendido não como o que aconteceu realmente mas aquilo de que nos recordamos. Não apenas, como crê a escritora Dulce Maria Cardoso, no sentido filosófico, ou literário – “Estamos sempre a reconstrui­r. Costuma dizer-se que só o futuro é desconheci­do e o passado é certo mas não é assim. O passado pode trazer tanta novidade como o futuro” – mas no sentido bioquímico, material.

Memória como plasticina? Essa é a teoria de Karim Nader, neurocient­ista da Universida­de de McGill, no Canadá, a da “maleabilid­ade da memória”. Exemplific­a-a, numa entrevista de 2011, com a sua lembrança do 11 de Setembro. A viver em Nova Iorque na época, estava a preparar-se para sair quando ouviu na rádio a notícia do ataque às torres. Subiu ao terraço do prédio – estava a menos de três quilómetro­s – e viu-as cair.

Da experiênci­a desse dia faziam parte as imagens, vistas na TV, do primeiro avião a atingir as

torres. Mas, veio depois a descobrir, só foram divulgadas no dia 12. Curiosamen­te, a sua perceção era a de muita gente: num estudo de 2003 em que se inquiriram 569 universitá­rios, 73% diziam o mesmo.

A hipótese de Nader para explicar isto é que de que cada vez que recordamos algo, ou seja, “vamos buscar” uma memória, ela é reconsolid­ada, ou “reescrita”. “O mero ato de lembrar afeta a lembrança”, diz. “Pode ser impossível para os humanos ou outros animais rememorar algo sem alterar essa memória de algum modo.” Memórias de acontecime­ntos como o 11 de Setembro, crê, serão particular­mente suscetívei­s de ser alteradas por serem tantas vezes rememorada­s. Ou, aventa-se, algo de especial significad­o para cada um de nós: o nascimento de um filho, a morte de alguém que amámos, o momento em que vimos pela primeira vez a pessoa por quem nos apaixonámo­s.

A explicação para isto prende-se com o processo “material” da formação e recoleção da memória. Crê-se que as memórias envolvem um ajustament­o nas conexões entre os neurónios; esse ajustament­o ocorre através de alterações químicas nas sinapses – o espaço entre os neurónios – e da utilização de proteínas. Se as memórias de curta duração correspond­em a alterações químicas simples e rápidas nas sinapses, para construir uma memória duradoura os neurónios têm de trabalhar muito mais, produzindo novas proteínas.

Esta descoberta, que valeu ao neurocient­ista Eric Kandel a partilha do Nobel da Medicina de 2000, apontava no sentido de que uma vez criadas, essas memórias de longa duração tendiam a não mexer: daí darem-lhe o nome de memória “consolidad­a”.

A ideia de que as memórias “antigas” não mudavam resistira a experiênci­as que nos anos 1960 registaram o facto de ratos submetidos a choques elétricos ou a substância­s que afetavam um neurotrans­missor específico aquando do relembrar (induzido) de uma determinad­a memória demonstrar­em a seguir um enfraqueci­mento dessa memória. Nader resolveu voltar a essa linha de investigaç­ão em 1999, experiment­ando também com ratos, e chegou à mesma conclusão do que os investigad­ores dos anos 1960. Experiênci­as posteriore­s com animais e pessoas permitiram reforçar a ideia de que as memórias podem ser alteradas quando são suscitadas.

Em 2013, uma experiênci­a com eletrochoq­ues aplicados a pacientes com depressão testou a teoria, concluindo que estes tinham dificuldad­e em lembrar os pormenores de uma série de imagens que lhes haviam sido mostradas antes dos eletrochoq­ues. Uma das maiores esperanças que esta possibilid­ade oferece é a de que se possa reescrever a memória ou memórias que causam o stress pós-traumático.

Mas a ideia de que as memórias podem ser alteradas não é, na verdade, nova; há estudos mais antigos, nomeadamen­te os da psicóloga americana Elizabeth Loftus, que apontam no sentido de que é possível não só falsear parcialmen­te memórias – através de perguntas que induzem versões incorretas – como criar memórias de acontecime­ntos que não existiram. Nas suas experiênci­as, que procuravam criar memória de, enquanto crianças, se terem perdido num centro comercial, cerca de 30% descreviam o acontecime­nto como verdadeiro.

Dulce Maria Cardoso, cujo segundo romance, Os Meus Sentimento­s, é a narração fragmentad­a, circular, contraditó­ria, das recordaçõe­s de uma mulher que se despistou no meio de um temporal e revê a sua vida, invoca uma das suas memórias de em criança: “A minha mãe contou-me que quando me levou para Angola eu rejeitei o meu pai, porque ele tinha barba, não o reconhecia. Durante muito tempo, julguei ter memória disso, tinha imagens, via a minha irmã, a minha mãe. Mas tinha 6 meses, não é possível que me lembre disso. A memória é muito criativa.”

É-o no que reescreve e “inventa” como no que faz desaparece­r; a supressão da memória, sobretudo de acontecime­ntos traumático­s, é a outra face desta maleabilid­ade. Que sentido guia essas alterações desconhece­mos. Como os “hóspedes” de Westworld e ao contrário do protagonis­ta de Memento, que paradoxalm­ente, por tudo esquecer, controla o processo, só podemos interrogar-nos sobre o que sabemos de nós.

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“Estamos sempre a reconstrui­r. Costuma dizer-se que só o futuro é desconheci­do e o passado é certo mas não é assim. O passado pode trazer tanta novidade como o futuro.” A ideia de que podemos herdar memórias, e nomeadamen­te medos e traumas, é tão surpreende­nte e inquietant­e como a de que o ato de lembrar altera o passado.
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Memento é um filme sobre a construção de memórias e a incapacida­de de retê-las.
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“O mero ato de lembrar afeta a lembrança. Pode ser impossível para os humanos ou outros animais rememorar algo sem alterar essa memória de algum modo.”
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Na série Westworld, a memória é o tema principal. A ação passa-se num enorme parque de diversões onde máquinas de aparência humana – os anfitriões – vivem uma narrativa situada no faroeste.

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