LEMBRAR, ESQUECER, INVENTAR: QUE SABEMOS DA MEMÓRIA?
De cada vez que nos lembramos de algo alteramos essa memória, diz um ramo da investigação recente. Outro afiança que memórias, pelo menos as olfativas, podem passar
de pais para filhos. Mergulho na complexidade de um mecanismo
que nos permite recordar – e esquecer – e que conforma e certifica
a nossa identidade individual mas também a da espécie: sem memória,
que seria da consciência do eu?
Na série de TV Westworld, a memória é o tema principal. A ação passa-se num enorme parque de diversões onde máquinas de aparência humana – os anfitriões – vivem uma narrativa situada no faroeste. A cada um desses androides é conferida uma história pessoal com uma memória associada, mas essa memória é supostamente apagada no fim de cada ciclo de narrativa – geralmente quando são mortos, já que os humanos que visitam o parque podem matá-los e fazer-lhes tudo o que lhes apeteça, enquanto os anfitriões não podem fazer mal aos humanos. No fim de cada “ciclo”, são reparados e a sua memória original reinstalada. Mas algures fica qualquer coisa – e a partir daí, da memória traumática que se vai acumulando dessas sucessivas “vidas”, nasce a consciência de si e do papel que estão a desempenhar, e a revolta.
A questão da série, como de outras ficções como Blade Runner (1982), na qual o caçador de replicants (outro nome dado aos androides) os distinguia precisamente pela deficiente memória de infância, quando lhes perguntava pela mãe, é o que distingue o humano – o que é ser humano, ou como se é ou não humano. E de como a memória, como noção da história de vida e da individualidade, desempenha um papel primordial nisso. Uma espécie de “lembro-me, logo sou”.
O argumento de Westworld é de Jonathan Nolan, irmão do cineasta Christopher Nolan, cujo segundo filme, com argumento de Jonathan, é o extraordinário Memento (2000), sobre um homem que perdeu a capacidade de criar memórias. A personagem de Leonard Shelby, interpretada por Guy Pearce, lembra-se – ou julga lembrar-se – de tudo até ao momento em que uma pancada na cabeça o tornou incapaz de formar novas memórias. Tem apenas alguns minutos de memória das coisas, até a perder.
Ou seja: se entrar num café e pedir uma bebida, passados três ou quatro minutos já não sabe o que está ali a fazer, se já pediu, se já tomou alguma coisa. Para lidar com essa afeção, tira polaroids e toma notas – tem uma polaroid do seu carro, por exemplo, para o reconhecer –, mandando tatuar no corpo os factos mais importantes. O twist do filme, que é todo ele um twist por ser filmado em reverso, algo que só percebemos no fim, é que Shelby tira partido da sua própria afeção para se enganar a si mesmo, criando narrativas alternativas para justificar as suas ações sem sofrer dilemas morais.
Algo que, naturalmente, pode ser visto como uma metáfora da forma como regemos a nossa memória – o que lembramos e esquecemos, ou como criamos a nossa própria história de modo a justificarmo-nos, ou seja, a sobreviver. Ou seja, de como todas as vidas são uma obra de ficção, na qual cada um de nós tem de acreditar, quer acreditar.
O homem que esquecia tudo O grande feito de Memento, como muitos já disseram, é fazer o espectador comungar da afeção do protagonista: não há uma narrativa fluida, só a aflição de fragmentos que tentamos unir para encontrar um sentido, descobrindo que estamos sempre a enganar-nos sobre o que está a acontecer e obrigando-nos assim a refletir sobre o processo da memória.
Definida como a complexa forma como adquirimos, armazenamos, retemos e recuperamos informação, ou, como diz o psiquiatra Frederico Simões do Couto, “a capacidade de reter e utilizar secundariamente a informação”, a memória divide-se em vários tipos. Há aquelas que duram apenas alguns segundos, e têm que ver com o darmo-nos conta de informação sobre o que nos rodeia (a chamada memória sensória); seguem-se as memórias de curta duração, que duram de 20 a 30 segundos; e finalmente as memórias que podem durar a vida toda, ou de longa duração. Esta classificação, conhecida desde 1968 como o modelo de memória de Atkinson-Shiffrin (cientistas americanos, ambos de primeiro nome Richard), cruza-se com outros conceitos de psicologia e psiquiatria, como o consciente e o inconsciente, correspondendo o primeiro à memória de curta duração e o segundo à de longa duração.
Mas como funciona isto exatamente? Sabe-se que diferentes áreas do cérebro estão envolvidas. O hipocampo é aquela em que as novas memórias se formam. Danos no hipocampo resultam na situação do protagonista de Memento; é também lá, frisa Frederico Simões do Couto, que se iniciam os problemas nos pacientes de Alzheimer, pelo depósito de uma proteína que bloqueia a capacidade de criar novas memórias; daí que comecem por perder a memória de curta duração, continuando a lembrar-se de coisas antigas (também essas se perdem com o avançar do processo degenerativo, até que a pessoa deixa completamente de saber quem é e de ter consciência de si).
A descoberta ou prova deste facto deveu-se a uma tragédia, a de Henry Gustave Molaison. Nascido em 1926 no Connecticut, começou a sofrer de crises de epilepsia aos 10 anos, provavelmente após uma queda de bicicleta. Em 1953, um médico sugeriu uma intervenção cirúrgica radical. Molaison concordou e foi-lhe extraído quase todo o hipocampo, assim como outras partes do cérebro, incluindo a amígdala. As crises de epilepsia melhoraram e, incrivelmente, Molaison conservou a sua personalidade e capacidade cognitiva em geral. Mas deixou de ter capacidade de formar novas memórias, como o protagonista de Memento. Os médicos responsáveis pela operação escreveram na altura: “Ele não consegue lembrar-se de onde é a casa de banho nem de coisa nenhuma do quotidiano no hospital.” Podia ler a mesma revista todos os dias, por exemplo, achando que nunca a tinha lido: era um caso puro de amnésia anterógrada (em contraste com a amnésia retrógrada, em que o esquecimento diz respeito aos eventos anteriores a um trauma, mantendo-se a capacidade de criar novas memórias).
Praticamente incapaz de trabalhar, dependente de notas para se lembrar de tudo – se tinha tomado banho, se tinha almoçado, se a mãe e o pai ainda eram vivos ou já tinham morrido –, Molaison, que não conseguia ter noção da sua idade por não ser capaz de se dar conta da passagem do tempo, foi para o resto da vida uma espécie de cobaia de laboratório, uma experiência viva sobre o funcionamento do cérebro. Quando morreu, em 2008, aos 82 anos, o órgão foi-lhe extraído para mais estudo.
Proust era um neurocientista? Mas voltemos à forma como guardamos a informação. Saul McLeod, investigador em psicologia da Universidade de Manchester, explica em “Os estádios da memória – codificação do armazenamento e recuperação” como guardamos a informação: “Há três formas de a codificar. A visual (imagem), a acústica (som) e a semântica (significado).” E dá um exemplo, o de um número de telefone. Se o vemos na nossa memória, usámos a codificação visual; se o repetimos para nós próprios, estamos a usar o modo acústico.
Segundo McLeod, a codificação acústica é a mais usada na memória de curta duração. Já na de longa duração, cuja “consolidação” ou “construção” demora horas, a regra é a codificação por significado. Mas também pode usar-se aí a codificação visual e acústica. Há mais diferenças de codificação entre os dois tipos de memória: a de curta duração é guardada e recuperada “em sequência”, a de longo termo por associação. E, mais uma vez, exemplifica: “Se numa experiência dermos a um grupo de pessoas uma sequência de objetos para memorizar e a seguir lhes perguntarmos qual o quarto objeto, elas terão de rememorar a sequência para responder; quando vamos ao primeiro andar buscar uma coisa e chegamos lá e não nos lembramos do quê, podemos recordar-nos se voltarmos ao sítio onde estávamos quando decidimos ir buscar a coisa.”
Ok. Mas, e para usar um exemplo clássico e misterioso de funcionamento da memória, como é que um cheiro ou um sabor – como o do pedaço de madalena molhado em chá no romance Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, nos projeta num tempo e lugar que julgávamos esquecidos? Em Proust Era Um Neurocientista, de 2007, o autor Jonah Lehrer, com formação em neurociência, procura demonstrar que aquilo que o romancista francês e outros contemporâneos descreviam na literatura foi décadas mais tarde “provado” pela ciência. No caso, como defendido em 2002 pela psicóloga Rachel Brown, que o olfato e o paladar são os únicos sentidos com ligação direta à área no cérebro onde são armazenadas as memórias de longa duração.
Esta informação ganha densidade face a uma descoberta (ou devemos chamar-lhe hipótese?) recente, a de que determinadas experiências, nomeadamente relacionadas com o olfato, stress e trauma, podem passar de pais para filhos. Uma equipa da Emory University (Atlanta, EUA) treinou ratos para temer um determinado cheiro, associando-o a choques elétricos. Tendo permitido a seguir que esses ratos se reproduzissem, a equipa detetou respostas semelhantes ao odor em causa na primeira e na segunda ninhadas.
Os resultados, publicados em 2013 na revista Nature Neuroscience, permitem perceber, explica um dos cientistas responsáveis, Brian Dias, “como as experiências tidas por mães e pais, antes de se reproduzirem, influenciam tanto a estrutura como a função do sistema nervoso dos descendentes. Este fenómeno pode contribuir para a compreensão da etiologia e da possível transmissão intergeracional de risco para afeções neuropsiquiátricas como fobias, ansiedade e stress pós-traumático.”
A ideia de que podemos herdar memórias, e nomeadamente medos e traumas, é tão surpreendente e inquietante como a de que o ato de lembrar altera o passado – entendido não como o que aconteceu realmente mas aquilo de que nos recordamos. Não apenas, como crê a escritora Dulce Maria Cardoso, no sentido filosófico, ou literário – “Estamos sempre a reconstruir. Costuma dizer-se que só o futuro é desconhecido e o passado é certo mas não é assim. O passado pode trazer tanta novidade como o futuro” – mas no sentido bioquímico, material.
Memória como plasticina? Essa é a teoria de Karim Nader, neurocientista da Universidade de McGill, no Canadá, a da “maleabilidade da memória”. Exemplifica-a, numa entrevista de 2011, com a sua lembrança do 11 de Setembro. A viver em Nova Iorque na época, estava a preparar-se para sair quando ouviu na rádio a notícia do ataque às torres. Subiu ao terraço do prédio – estava a menos de três quilómetros – e viu-as cair.
Da experiência desse dia faziam parte as imagens, vistas na TV, do primeiro avião a atingir as
torres. Mas, veio depois a descobrir, só foram divulgadas no dia 12. Curiosamente, a sua perceção era a de muita gente: num estudo de 2003 em que se inquiriram 569 universitários, 73% diziam o mesmo.
A hipótese de Nader para explicar isto é que de que cada vez que recordamos algo, ou seja, “vamos buscar” uma memória, ela é reconsolidada, ou “reescrita”. “O mero ato de lembrar afeta a lembrança”, diz. “Pode ser impossível para os humanos ou outros animais rememorar algo sem alterar essa memória de algum modo.” Memórias de acontecimentos como o 11 de Setembro, crê, serão particularmente suscetíveis de ser alteradas por serem tantas vezes rememoradas. Ou, aventa-se, algo de especial significado para cada um de nós: o nascimento de um filho, a morte de alguém que amámos, o momento em que vimos pela primeira vez a pessoa por quem nos apaixonámos.
A explicação para isto prende-se com o processo “material” da formação e recoleção da memória. Crê-se que as memórias envolvem um ajustamento nas conexões entre os neurónios; esse ajustamento ocorre através de alterações químicas nas sinapses – o espaço entre os neurónios – e da utilização de proteínas. Se as memórias de curta duração correspondem a alterações químicas simples e rápidas nas sinapses, para construir uma memória duradoura os neurónios têm de trabalhar muito mais, produzindo novas proteínas.
Esta descoberta, que valeu ao neurocientista Eric Kandel a partilha do Nobel da Medicina de 2000, apontava no sentido de que uma vez criadas, essas memórias de longa duração tendiam a não mexer: daí darem-lhe o nome de memória “consolidada”.
A ideia de que as memórias “antigas” não mudavam resistira a experiências que nos anos 1960 registaram o facto de ratos submetidos a choques elétricos ou a substâncias que afetavam um neurotransmissor específico aquando do relembrar (induzido) de uma determinada memória demonstrarem a seguir um enfraquecimento dessa memória. Nader resolveu voltar a essa linha de investigação em 1999, experimentando também com ratos, e chegou à mesma conclusão do que os investigadores dos anos 1960. Experiências posteriores com animais e pessoas permitiram reforçar a ideia de que as memórias podem ser alteradas quando são suscitadas.
Em 2013, uma experiência com eletrochoques aplicados a pacientes com depressão testou a teoria, concluindo que estes tinham dificuldade em lembrar os pormenores de uma série de imagens que lhes haviam sido mostradas antes dos eletrochoques. Uma das maiores esperanças que esta possibilidade oferece é a de que se possa reescrever a memória ou memórias que causam o stress pós-traumático.
Mas a ideia de que as memórias podem ser alteradas não é, na verdade, nova; há estudos mais antigos, nomeadamente os da psicóloga americana Elizabeth Loftus, que apontam no sentido de que é possível não só falsear parcialmente memórias – através de perguntas que induzem versões incorretas – como criar memórias de acontecimentos que não existiram. Nas suas experiências, que procuravam criar memória de, enquanto crianças, se terem perdido num centro comercial, cerca de 30% descreviam o acontecimento como verdadeiro.
Dulce Maria Cardoso, cujo segundo romance, Os Meus Sentimentos, é a narração fragmentada, circular, contraditória, das recordações de uma mulher que se despistou no meio de um temporal e revê a sua vida, invoca uma das suas memórias de em criança: “A minha mãe contou-me que quando me levou para Angola eu rejeitei o meu pai, porque ele tinha barba, não o reconhecia. Durante muito tempo, julguei ter memória disso, tinha imagens, via a minha irmã, a minha mãe. Mas tinha 6 meses, não é possível que me lembre disso. A memória é muito criativa.”
É-o no que reescreve e “inventa” como no que faz desaparecer; a supressão da memória, sobretudo de acontecimentos traumáticos, é a outra face desta maleabilidade. Que sentido guia essas alterações desconhecemos. Como os “hóspedes” de Westworld e ao contrário do protagonista de Memento, que paradoxalmente, por tudo esquecer, controla o processo, só podemos interrogar-nos sobre o que sabemos de nós.