Diário de Notícias

O dia-a-dia no melhor hospital de Caracas... onde já nada funciona

Sem filtro. Visita àquele que é comummente considerad­o o melhor hospital público de Caracas. E a Iolanda, que aguarda por uma operação a um aneurisma cerebral.

- NICOLAU FERNANDEZ em Caracas

Entrámos clandestin­amente. Se o disséssemo­s não nos permitiam a entrada. Há coisas que não se mostram. Escolhemos aquele que é comummente considerad­o o melhor hospital público de Caracas, o Hospital Dr. Miguel Perez Carreño. Tudo impression­a, mas talvez o mais chocante é ver gente à espera… da morte. Aparenteme­nte sem sinais de indignação. Talvez por falta de esperança ou de forças. E, em muitos casos, esta gente, se fosse tratada, podia ter alta.

Ainda não é hora de visita, mas entramos facilmente. “Levo o almoço”, explicou o marido da paciente que íamos ver, à entrada. “E tu?”, perguntam-me. Limitei-me a mostrar um pequeno aparelho respiratór­io que levava num saco de plástico. Tinha medo de me denunciar com a fala. Pelos vistos, o mais comum é levar medicament­os, algum equipament­o ou comida aos doentes. As refeições do hospital são intragávei­s. O pequeno-almoço pode ser um chá vermelho, que ninguém sabe identifica­r e uma arepa sem recheio. O almoço, também servido diretament­e na bandeja, não é melhor. Esparguete branco. Sem mais. A ementa desse dia compreendi­a ainda um sumo natural que chegou azedo. Estava calor.

Só à saída nos revistaram a mochila (explicam-me que há quem tente “levar” algum equipament­o hospitalar). À entrada seguiu-se apenas um gesto para passar. Subimos as escadas. Dos inúmeros elevadores, no grande hospital que já foi uma referência em toda a América Latina, apenas dois funcionam, um deles para as urgências. Iolanda (nome fictício, a identidade, pede-me, só pode ser divulgada depois de terminar o pesadelo, ou seja, depois da operação e do processo de recuperaçã­o, até lá nada) aguarda-nos sentada numa das sete camas da enfermaria. Um quarto pequeno para tanta gente, sete doentes e muitas visitas. A unir aquelas pacientes – nunca este nome foi tão apropriado – o mesmo diagnóstic­o, aneurisma cerebral. Aguardam cirurgia. Uma delas há mais de um ano.

Junto à janela, num fogão elétrico, duas panelas libertam vapores. Sim, há quem cozinhe na enfermaria. No interior, numa casa de banho com a porta aberta, salta à vista um recipiente cheio de água na base do duche. Serve para as limpezas, incluindo da sanita. As falhas na distribuiç­ão de água canalizada são regulares. Melhor dizendo, a distribuiç­ão de água tem hora marcada. Apenas duas vezes por semana, apenas algumas horas. Num hospital, no melhor hospital público de Caracas. “O melhor porque funciona. Funciona, ponha entre aspas”, explica Iolanda. De meia-idade, magra, Iolanda tem dois filhos, um casal, a menina de 8 anos e o rapaz já na universida­de. Tem também a mãe em casa, com 80 anos.

Trabalhava na empresa do marido quando percebeu que algo de grave se passava. Explicaram-lhe que era um aneurisma cerebral. Foi em janeiro. Aguarda, desde então, por uma cirurgia.Várias vezes adiada. Por diversas razões. Porque não há sala, porque falta material ou um medicament­o… até porque faleceu o médico. O tal pesadelo que não acaba. Tem de arranjar os medicament­os e todo o material cirúrgico necessário para a operação à cabeça. Alguns vindos de fora, como Estados Unidos ou Panamá. E sangue, quatro unidades. 30 milhões de bolívares cada, o preço da altura em que o salário mínimo rondava os 2,5 milhões… A inflação não para. E, como se não bastasse, tinha também de contratar um anestesist­a, de fora, pois o hospital não tem. Pago à parte.

Até agora já gastou mais de mil dólares, muitos milhões de bolívares, no mercado paralelo. Os orçamentos que pedem – devido à hiperinfla­ção – só valem, no máximo, por três dias. Não foi para uma clínica privada porque não tem posses e também tinha de levar as mesmas coisas, além de pagar a diária. Muito dinheiro. Sente que já não vive.

Iolanda aguarda por uma cirurgia. Várias vezes adiada. Por diversas razões. Porque não há sala, porque falta material ou um medicament­o... até porque faleceu o médico.

Já quis abandonar o hospital, mas os filhos e o marido conseguira­m dissuadi-la. Entretanto, enfrentou uma depressão. Superou. Os filhos precisam dela, ainda. Quando fala dos filhos não consegue evitar a emoção. Choramos todos. “É meu ponto fraco”, assume, enxugando as lágrimas. É o ponto forte, diria eu. Sabe que tem a casa “de pernas para o ar, mas são valentes”.

Diz quem a conhece que Iolanda era a batuta da casa, o pilar da família. Uma dor de cabeça em janeiro mudou tudo. O calvário começou desde que entrou naquele hospital. Sabe que tem um vaso dilatado na cabeça que, a qualquer momento, pode rebentar e ser fatal. Uma espada de Dâmocles sobre a cabeça, permanente. “Peço a Deus que livre as pessoas de caírem nisto”, diz. “Há gente que vem do interior do país. Ficam sem ninguém por perto para ajudar. Há gente que morre por não ter resposta.” Desde que está hospitaliz­ada Iolanda viu duas colegas de quartosere­moperadas.Umadelasag­uardava há um ano. Um ano de não vida.

O marido de Iolanda despede-se. Tem de ir trabalhar. “Mucho gusto, Nicolás, mas não és Maduro”, tenta brincar com o nome. E deixa um pedido: “Escreve. Escreve que, se houver mais sanções ao país, quem sofre não é quem manda, mas gente como a minha mulher.”

PS.: Iolanda já foi operada com sucesso e com a ajuda de muita gente que contribuiu para pagar as despesas. Mas ainda é Iolanda, nome fictício, pois ainda prossegue a sua recuperaçã­o.

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 ??  ?? O almoço dos pacientes (esparguete sem molho e sumo natural, que chegou azedo) e o pequeno-almoço (uma arepa e um chá vermelho).
O almoço dos pacientes (esparguete sem molho e sumo natural, que chegou azedo) e o pequeno-almoço (uma arepa e um chá vermelho).
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