Diário de Notícias

Uma leitaria à venda, uma marisqueir­a remodelada, uma cidade em mudança

- CLÁUDIA MARQUES SANTOS

Pensava-se que sim mas o Pinóquio, onde o pica-pau rivaliza com os camarões, afinal não vai fechar. A D. Fernanda quer vender A Minhota. E o Tati tem os dias contados. Marcelo despediu-se da Suíça, na cidade onde do Marrare sobrevive apenas a receita do bife.

Éuma rua que tem uma quantidade consideráv­el de prédios num frenesim de obras, máquinas a içar materiais de construção com a ajuda de operários empoleirad­os em andaimes, o bip bip da sinalizaçã­o sonora sempre presente. É uma rua que convive com lojas tradiciona­is e antiquário­s que, por oposição à azáfama de hora de almoço dos cafés e dos restaurant­es – uns ainda tascos, outros já de traça uniforme às das grandes metrópoles do mundo –, têm subentendi­da a palavra silêncio à entrada da porta, soprada pelos móveis e objetos de décadas anteriores que se encontram lá dentro. Esta rua assume a vitalidade das duas Lisboas, a antiga e a nova, chama-se Rua de São José e tem uma pequena leitaria de esquina quando se chega ao n.º 138. A fachada é feita de uma montra em ferro forjado pintado de azul e, do lado direito, encontra-se um painel de azulejos onde por cima pode ler-se “Leitaria e Manteigari­a A Minhota”. Na montra está colado um autocolant­e transparen­te com letras pretas a dizer “Loja com História”.

No interior, encontram-se embutidos e empedrados de uma época, mobiliário de outra e, a agarrar toda aquela magnífica incoerênci­a por pinças, está o seu carácter velho e decadente. Ao balcão, que tem em cima uma boleira de vidro com alguns queques e um bolo de arroz dentro, está a dona do estabeleci­mento, reduzido hoje a café. A dona Fernanda tem 80 anos, a leitaria manteigari­a 91. O marido começou por ser aqui empregado, adquiriu entretanto o negócio com outro trabalhado­r e, em 1981, quando morreu, dona Fernanda substituiu-o nos comandos da sua metade da sociedade. Mais tarde, o filho Luís Santos veio a adquirir a parte do outro sócio. Ainda hoje a dona Fernanda se levanta todos os dias às cinco da manhã na sua casa do Bairro Alto e vem abrir as portas d’A Minhota. O filho passa de carro à hora de almoço para levá-la a casa e regressa para fazer as tardes. “Antigament­e, vendíamos muito: iogurtes, queijos de toda a qualidade. Chegávamos a vender cinco quilos de fiambre por dia”, conta dona Fernanda. “Depois abriram os supermerca­dos e tramaram-nos. Agora é lojas por todo o lado.” Uma cliente da casa, já de saída, ouve a conversa e ainda lhe atira um “isso vai tudo voltar”.

A parede que serve de expositor e separa o balcão da copa é feita de mármore, colu- nas trabalhada­s a dar porte a toda a estrutura. Nas prateleira­s junto ao teto estão garrafas de bebidas alcoólicas empoeirada­s, com os rótulos amarelecid­os pelo esquecimen­to. São todas da década de 1970. No lado esquerdo existe um pequeno cubículo onde cabe uma cadeira e uma secretária; atrás, um cofre de ferro a atribuir um ar de museu ao espaço. A arca frigorífic­a embutida no balcão, um objeto de fórmica verde-água com debruns dourados, dos anos 1970, lindíssima, também não funciona. O motor custa 800 euros a arranjar.

Dois casais de turistas e os filhos entram no estabeleci­mento, fascinados com o lugar. Pedem galões, sentam-se dispersos pelas cadeiras livres das quatro mesas de fórmica verde-água que existem. Da conversa entre eles, percebem-se as palavras “authentiek” e“patrimoniu­m”. Reparam na pia redonda para lavar as mãos que se encontra num dos cantos da sala e sorriem. Encostado ao balcão está um trabalhado­r português na hora de almoço. Edgar Gomes, 32 anos, técnico de telecomuni­cações, bebe uma mini na sua pausa de almoço. “É a segunda vez que cá venho”, diz. “Prefiro isto a qualquer outro sítio, onde deixamos o couro e o cabelo e somos mais mal servidos.” O Pinóquio resiste O verde-água, essa cor-conforto dos hábitos de restauraçã­o portuguese­s, mas aqui escurecido pelos 36 anos de casa, é o tom que nos engole assim que entramos no restaurant­e-cervejaria Pinóquio, chegados aos Restaurado­res. O estabeleci­mento esteve na iminência de fechar, há um mês, mas vai permanecer de portas abertas, com obras de remodelaçã­o previstas até ao final do ano. Umas riscas pintadas de verde-escuro parecem as linhas com indicações traçadas no chão dos hospitais, a subirem pelas paredes e a cruzarem-se no teto como um

mapa. Muitos dos clientes que entram cumpriment­am os empregados. Oitenta por cento da clientela da casa é portuguesa, mas há também brasileiro­s, angolanos, coreanos. Numa mesa junto à janela, umas senhoras brasileira­s pedem ao empregado de mesa, ao senhor António: “Nos arranja um daqueles presentes?” António Gomes, 43 anos, empregado ali há 27– eéumd os mais novos –, sabe a que presente se referem e traz uma dose de batatas pála-pála caseiras. A boa disposição e a capacidade de resposta rápida que o serviço à mesa exige andam de mãos dadas no Pinóquio, os empregados brincam com as crianças, contam piadas aos clientes, revezam-se cronomet ricamente na saí dados pratos da copa, que tem uma porta de acesso demasiado pequena para tanto tráfego. São 33 funcionári­os. Conta António Gomes que, uma vez, um senhor teve um enfarte e os empregados de serviço trataram de organizar a evacuação dos outros clientes para a esplanada de modo que o INEM pudesse tr aba lharà vontade. Os enhorvolto­uà marisqueir­a e disse-lhes que regressari­a sempre coma família para almoçar naquela data, 5 de outubro, e acrescento­u que, no dia em que deixasse de vir, seria porque teria morrido. Não vem há dois anos.

Depois das Portas de Santo Antão, o Teatro Nacional D. Maria II anuncia numa das varandas do edifício uma das próximas peças a ser apresentad­as, À Espera de Godot. Como deu a ver Beckett, ansiamos demasiado por uma ideia, de cidade, que não sabemos bem qual é, esquecendo-nos de que ela é percurso e não finalidade. Já na Praça Dom Pedro IV, passamos pela Pastelaria-Casa de Chá ASuíça,éo seu último dia de portas abertas, depois de o edifício ter sido vendido. À noite, o Presidente da República foi lá jantar. Na esplanada, uma senhora de idade tinha em cima da mesa os resquícios do que tinha sido uma refeição feita de um bolo e um galão. Na mão segurava religiosam­ente um envelope transparen­te plastifica­do, com impressos do Euromilhõe­s dentro, que devia ter preenchido na Casa da Sorte, algumas portas ao lado. Numa outra mesa, um grupo de homens ingleses, vestidos com T-shirts iguais para não perderem o norte à despedida de solteiro que estavam a celebrar, bebiam canecas de cerveja que os fazia elevarem o volume de voz para níveis acima do necessário.

O narrador de O Cavalo Espantado, de Alves Redol, acrescenta-nos o contexto desta esplanada que agora fechou. Foi em 1939 “a pedido de estrangeir­os sem sol para os aquecer na vida” que abriu. “O gerente cedera, contrafeit­o, com receio de perder uma clientela que desconheci­a os preços e não os regateava.” A esplanada ganhou até um nome, Bompernass­e, uma “montra de pernas e de coxas para todas as gulas lisboetas”, chamava-lhe o narrador, também ele a tentar perceber o que pensar do tempo que passava por ele e por aquelas mulheres que cruzavam as pernas, enquanto bebiam o seu café e fumavam o pensativo cigarro que era o dos homens, no passado. Para onde irá o Tati? Esta foi também a semana em que se soube que o Café Tati vai fechar portas, passados sete anos. Assim no-lo confirmou o sócio Ramón Ibañez. Atravessan­do a Baixa e chegando ao Cais do Sodré, nas traseiras do Mercado Time Out, o Café Tati é feito de colunas de pedra, janelas grandes a deixar entrar a luz do dia e alguns bocados de papel de parede em tons verde-água. A maioria dos clientes trabalham ao computador, embalados pelo silêncio. “A renda é de 2000. Quando viemos para cá, no verão de 2011, era muito. Agora, com a rua cor-de-rosa e a nova dinâmica da noite, passou a ser barato”, diz Ibañez. “O senhorio não teve qualquer abertura para negociação. Estamos a ver hipóteses de outros locais.” O balcão lateral é também feito de fórmica, azul, com duas riscas douradas na diagonal, os dois terços superiores da peça reservados a montras de vidro. Uma parede está reservada a fotografia­s, de vários tamanhos e épocas, como uma linha do tempo. Numa delas, a preto e branco, está um senhor ao balcão, acompanhad­o de um jovem e um adolescent­e. O senhor veste de fato e gravata e nas prateleira­s atrás há toda uma organizaçã­o de garrafas que Ramón Ibañez diz serem licores, entre eles o de banana. Era conhecida por Casa da Banana e foi uma das vidas do estabeleci­mento antes de se tornar Café Tati. Uma parcela do espaço em branco da parede é uma moldura, por acontecer, com a fotografia do Tati.

N’A Minhota, o fim de tarde aproxima-se, umas quantas moscas voam em círculo por cima do balcão. Trouxeram com elas a cápsula do tempo, alheias à higienizaç­ão dos tempos e dos costumes. Abandonado numa das mesas está um cálice sujo de vinho tinto. Um copo de três custa 60 cêntimos. O espaço está à venda há três meses.

Ainda hoje a dona Fernanda se levanta todos os dias às cinco da manhã na sua casa do Bairro Alto e vem abrir as portas d’A Minhota.

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Uma antigament­e moderna máquina de café, uma das relíquias que guarda a leitaria a Minhota, um daqueles espaços em vias de extinção na cidade de Lisboa, onde Luís Santos (ao lado) vai fazendo os seus dias.

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