Uma leitaria à venda, uma marisqueira remodelada, uma cidade em mudança
Pensava-se que sim mas o Pinóquio, onde o pica-pau rivaliza com os camarões, afinal não vai fechar. A D. Fernanda quer vender A Minhota. E o Tati tem os dias contados. Marcelo despediu-se da Suíça, na cidade onde do Marrare sobrevive apenas a receita do bife.
Éuma rua que tem uma quantidade considerável de prédios num frenesim de obras, máquinas a içar materiais de construção com a ajuda de operários empoleirados em andaimes, o bip bip da sinalização sonora sempre presente. É uma rua que convive com lojas tradicionais e antiquários que, por oposição à azáfama de hora de almoço dos cafés e dos restaurantes – uns ainda tascos, outros já de traça uniforme às das grandes metrópoles do mundo –, têm subentendida a palavra silêncio à entrada da porta, soprada pelos móveis e objetos de décadas anteriores que se encontram lá dentro. Esta rua assume a vitalidade das duas Lisboas, a antiga e a nova, chama-se Rua de São José e tem uma pequena leitaria de esquina quando se chega ao n.º 138. A fachada é feita de uma montra em ferro forjado pintado de azul e, do lado direito, encontra-se um painel de azulejos onde por cima pode ler-se “Leitaria e Manteigaria A Minhota”. Na montra está colado um autocolante transparente com letras pretas a dizer “Loja com História”.
No interior, encontram-se embutidos e empedrados de uma época, mobiliário de outra e, a agarrar toda aquela magnífica incoerência por pinças, está o seu carácter velho e decadente. Ao balcão, que tem em cima uma boleira de vidro com alguns queques e um bolo de arroz dentro, está a dona do estabelecimento, reduzido hoje a café. A dona Fernanda tem 80 anos, a leitaria manteigaria 91. O marido começou por ser aqui empregado, adquiriu entretanto o negócio com outro trabalhador e, em 1981, quando morreu, dona Fernanda substituiu-o nos comandos da sua metade da sociedade. Mais tarde, o filho Luís Santos veio a adquirir a parte do outro sócio. Ainda hoje a dona Fernanda se levanta todos os dias às cinco da manhã na sua casa do Bairro Alto e vem abrir as portas d’A Minhota. O filho passa de carro à hora de almoço para levá-la a casa e regressa para fazer as tardes. “Antigamente, vendíamos muito: iogurtes, queijos de toda a qualidade. Chegávamos a vender cinco quilos de fiambre por dia”, conta dona Fernanda. “Depois abriram os supermercados e tramaram-nos. Agora é lojas por todo o lado.” Uma cliente da casa, já de saída, ouve a conversa e ainda lhe atira um “isso vai tudo voltar”.
A parede que serve de expositor e separa o balcão da copa é feita de mármore, colu- nas trabalhadas a dar porte a toda a estrutura. Nas prateleiras junto ao teto estão garrafas de bebidas alcoólicas empoeiradas, com os rótulos amarelecidos pelo esquecimento. São todas da década de 1970. No lado esquerdo existe um pequeno cubículo onde cabe uma cadeira e uma secretária; atrás, um cofre de ferro a atribuir um ar de museu ao espaço. A arca frigorífica embutida no balcão, um objeto de fórmica verde-água com debruns dourados, dos anos 1970, lindíssima, também não funciona. O motor custa 800 euros a arranjar.
Dois casais de turistas e os filhos entram no estabelecimento, fascinados com o lugar. Pedem galões, sentam-se dispersos pelas cadeiras livres das quatro mesas de fórmica verde-água que existem. Da conversa entre eles, percebem-se as palavras “authentiek” e“patrimonium”. Reparam na pia redonda para lavar as mãos que se encontra num dos cantos da sala e sorriem. Encostado ao balcão está um trabalhador português na hora de almoço. Edgar Gomes, 32 anos, técnico de telecomunicações, bebe uma mini na sua pausa de almoço. “É a segunda vez que cá venho”, diz. “Prefiro isto a qualquer outro sítio, onde deixamos o couro e o cabelo e somos mais mal servidos.” O Pinóquio resiste O verde-água, essa cor-conforto dos hábitos de restauração portugueses, mas aqui escurecido pelos 36 anos de casa, é o tom que nos engole assim que entramos no restaurante-cervejaria Pinóquio, chegados aos Restauradores. O estabelecimento esteve na iminência de fechar, há um mês, mas vai permanecer de portas abertas, com obras de remodelação previstas até ao final do ano. Umas riscas pintadas de verde-escuro parecem as linhas com indicações traçadas no chão dos hospitais, a subirem pelas paredes e a cruzarem-se no teto como um
mapa. Muitos dos clientes que entram cumprimentam os empregados. Oitenta por cento da clientela da casa é portuguesa, mas há também brasileiros, angolanos, coreanos. Numa mesa junto à janela, umas senhoras brasileiras pedem ao empregado de mesa, ao senhor António: “Nos arranja um daqueles presentes?” António Gomes, 43 anos, empregado ali há 27– eéumd os mais novos –, sabe a que presente se referem e traz uma dose de batatas pála-pála caseiras. A boa disposição e a capacidade de resposta rápida que o serviço à mesa exige andam de mãos dadas no Pinóquio, os empregados brincam com as crianças, contam piadas aos clientes, revezam-se cronomet ricamente na saí dados pratos da copa, que tem uma porta de acesso demasiado pequena para tanto tráfego. São 33 funcionários. Conta António Gomes que, uma vez, um senhor teve um enfarte e os empregados de serviço trataram de organizar a evacuação dos outros clientes para a esplanada de modo que o INEM pudesse tr aba lharà vontade. Os enhorvoltouà marisqueira e disse-lhes que regressaria sempre coma família para almoçar naquela data, 5 de outubro, e acrescentou que, no dia em que deixasse de vir, seria porque teria morrido. Não vem há dois anos.
Depois das Portas de Santo Antão, o Teatro Nacional D. Maria II anuncia numa das varandas do edifício uma das próximas peças a ser apresentadas, À Espera de Godot. Como deu a ver Beckett, ansiamos demasiado por uma ideia, de cidade, que não sabemos bem qual é, esquecendo-nos de que ela é percurso e não finalidade. Já na Praça Dom Pedro IV, passamos pela Pastelaria-Casa de Chá ASuíça,éo seu último dia de portas abertas, depois de o edifício ter sido vendido. À noite, o Presidente da República foi lá jantar. Na esplanada, uma senhora de idade tinha em cima da mesa os resquícios do que tinha sido uma refeição feita de um bolo e um galão. Na mão segurava religiosamente um envelope transparente plastificado, com impressos do Euromilhões dentro, que devia ter preenchido na Casa da Sorte, algumas portas ao lado. Numa outra mesa, um grupo de homens ingleses, vestidos com T-shirts iguais para não perderem o norte à despedida de solteiro que estavam a celebrar, bebiam canecas de cerveja que os fazia elevarem o volume de voz para níveis acima do necessário.
O narrador de O Cavalo Espantado, de Alves Redol, acrescenta-nos o contexto desta esplanada que agora fechou. Foi em 1939 “a pedido de estrangeiros sem sol para os aquecer na vida” que abriu. “O gerente cedera, contrafeito, com receio de perder uma clientela que desconhecia os preços e não os regateava.” A esplanada ganhou até um nome, Bompernasse, uma “montra de pernas e de coxas para todas as gulas lisboetas”, chamava-lhe o narrador, também ele a tentar perceber o que pensar do tempo que passava por ele e por aquelas mulheres que cruzavam as pernas, enquanto bebiam o seu café e fumavam o pensativo cigarro que era o dos homens, no passado. Para onde irá o Tati? Esta foi também a semana em que se soube que o Café Tati vai fechar portas, passados sete anos. Assim no-lo confirmou o sócio Ramón Ibañez. Atravessando a Baixa e chegando ao Cais do Sodré, nas traseiras do Mercado Time Out, o Café Tati é feito de colunas de pedra, janelas grandes a deixar entrar a luz do dia e alguns bocados de papel de parede em tons verde-água. A maioria dos clientes trabalham ao computador, embalados pelo silêncio. “A renda é de 2000. Quando viemos para cá, no verão de 2011, era muito. Agora, com a rua cor-de-rosa e a nova dinâmica da noite, passou a ser barato”, diz Ibañez. “O senhorio não teve qualquer abertura para negociação. Estamos a ver hipóteses de outros locais.” O balcão lateral é também feito de fórmica, azul, com duas riscas douradas na diagonal, os dois terços superiores da peça reservados a montras de vidro. Uma parede está reservada a fotografias, de vários tamanhos e épocas, como uma linha do tempo. Numa delas, a preto e branco, está um senhor ao balcão, acompanhado de um jovem e um adolescente. O senhor veste de fato e gravata e nas prateleiras atrás há toda uma organização de garrafas que Ramón Ibañez diz serem licores, entre eles o de banana. Era conhecida por Casa da Banana e foi uma das vidas do estabelecimento antes de se tornar Café Tati. Uma parcela do espaço em branco da parede é uma moldura, por acontecer, com a fotografia do Tati.
N’A Minhota, o fim de tarde aproxima-se, umas quantas moscas voam em círculo por cima do balcão. Trouxeram com elas a cápsula do tempo, alheias à higienização dos tempos e dos costumes. Abandonado numa das mesas está um cálice sujo de vinho tinto. Um copo de três custa 60 cêntimos. O espaço está à venda há três meses.
Ainda hoje a dona Fernanda se levanta todos os dias às cinco da manhã na sua casa do Bairro Alto e vem abrir as portas d’A Minhota.