Guerra cada vez menos surda na Igreja: progressistas vs. conservadores
Francisco quer outra atitude com divorciados e que se fale aos homossexuais. Aqueles que não gostam acusam-no de heresia. São tempos de lodo a pedir purificação.
OPapa Francisco aproveitou o Dia de Oração pelo Cuidado com a Criação, celebrado ontem pela Igreja Católica, para refletir sobre o acesso à água, “elemento tão simples e precioso cujo acesso infelizmente é difícil para muitos, se não impossível”. Ela é um “direito humano essencial”, um “elemento essencial de purificação e de vida” para os cristãos.
Nos dias que correm, o Papa precisa de bem mais do que fazer da água elemento purificador de uma igreja apanhada num lodo que corrói os seus alicerces, com a denúncia de milhares de casos de abusos sexuais de menores, dos EUA à Austrália, da Irlanda ao Chile. Limpar as estruturas de Roma abriu uma cada vez menos surda guerra contra o bispo de Roma, com os setores ultraconservadores a usar de todos os meios para atingirem um fim: a renúncia de Francisco.
“Não tenho dúvidas”, interpreta Fernando Calado Rodrigues, padre em Bragança, de que entre os que contestam a ação do Papa “ninguém está preocupado com as vítimas, estão preocupados em atacar o Papa porque são movidos por outros interesses”. De Boston, aponta Samuel Beirão, padre jesuíta: “Os ataques não são novos, apenas têm ganho um tom mais elevado. As pessoas que não querem Francisco não são muitas, mas infelizmente fazem muito barulho.”
Na semana que passou, o arcebispo Carlo MariaViganò, ex-núncio nos EUA, foi um dos que elevaram a voz – para logo se refugiar num local secreto. Alegava que Francisco sabia das acusações de abusos sexuais do cardeal americano Theodore McCarrick, desde 2013, mas fechou os olhos, pelo que (pediuViganò) tem de renunciar. O Papa preferiu uma resposta do género “leiam, investiguem e tirem as vossas conclusões”, que para muitos não afastou a dúvida instalada pelas acusações de Viganò. Algumas foram desmentidas por jornais americanos.
A contestação ao Papa argentino que fala de forma bem mais próxima das pessoas não é nova, mas toma agora tons novos. Quatro cardeais, com Raymond Burke (americano que defende uma Igreja integrista) à cabeça, questionaram as “heresias” do Papa, nomeadamente depois da publicação da encíclica Amoris laetitia, por o bispo de Roma abrir novas portas aos crentes divorciados.Viganò, na sua carta de domingo passado, dispara contra um suposto lóbi gay próximo de Francisco e que o Papa estará a promover uma alteração doutrinária de Roma face à homossexualidade.
Em Portugal, os bispos vão-se posicionando ao lado de Francisco. Os cardeais António Marto e Manuel Clemente e o bispo António Moiteiro Ramos, de Aveiro, sublinham a palavra “campanha organizada” e “orquestrada” contra o Papa. Samuel Beirão traduz ao DN que “não se pode ser inocente e pensar que não há um grupo de pessoas dentro da Igreja que não gosta do modo de liderar de Francisco. É um homem que não tem medo, porque confia em Deus.” Abusos sem desculpas Enquanto Viganò lançava a sua carta, Francisco pedia perdão às vítimas dos abusos na Irlanda. Por dez vezes. Calado Rodrigues e Samuel Beirão concordam que um só abuso é inadmissível na Igreja.
“Assumir os erros não é só reconhecê-los publicamente ou rezar e fazer penitência. Claro que isso são modos de mostrar que se está ao lado das vítimas e num contexto de fé tem uma força reparado-
ra e sanadora. Mas é preciso ir mais longe. É dever da Igreja ante as vítimas ser o mais transparente possível e colaborar de todos os modos com as autoridades civis para que se faça justiça”, responde ao DN o jesuíta.
O pároco em Bragança aponta os casos portugueses, em anos recentes, para mostrar a mudança de atitude da Igreja, “que colaborou” ativamente com a justiça. “Mais importante ainda: disponibilizou-se para o apoio às vítimas.”
O que tem de mudar é a formação nos seminários. “Para se ser padre é preciso ter-se uma maturidade afetiva”, nota a médica psiquiatra Margarida Neto, que trabalha na Casa de Saúde do Telhal e que recusa categoricamente que “o celibato empurre para a pedofilia”. “Para se ser padre é necessário um acompanhamento espiritual que deve ser complementado com uma avaliação psicológica.” E nota: “Deus não está fora disto, a espiritualidade não está fora disto. Muitas congregações e seminários têm essa avaliação à entrada.”
Nos seminários, o discurso sobre a afetividade e a sexualidade não pode ser escondido. “É necessário pôr os seminaristas a falar sobre estas matérias, sobre as dificuldades de manter fidelidade ao projeto de celibato”, reitera.
“A estrutura dos nossos seminários é, de certo modo, a usada desde Trento (século XVI), nota Samuel Beirão, mas “repensar a formação” nos seminários “é diferente de pôr em causa os fundamentos teológicos da promessa do celibato por parte dos padres”.
O debate sobre o celibato deve acontecer, sublinha Margarida Neto, mas a Igreja não o deve fazer por causa dos abusos sexuais de menores. “Não há uma relação entre uma coisa e outra. A discussão, reforçada agora, à volta destas coisas vem com menos discernimento, retira serenidade à discussão. Fazer esta discussão por causa da pedofilia é um erro.”
Resta saber se estes debates terão o Papa Francisco como protagonista – e chave de mudança.