Diário de Notícias

Guerra cada vez menos surda na Igreja: progressis­tas vs. conservado­res

Francisco quer outra atitude com divorciado­s e que se fale aos homossexua­is. Aqueles que não gostam acusam-no de heresia. São tempos de lodo a pedir purificaçã­o.

- MIGUEL MARUJO

OPapa Francisco aproveitou o Dia de Oração pelo Cuidado com a Criação, celebrado ontem pela Igreja Católica, para refletir sobre o acesso à água, “elemento tão simples e precioso cujo acesso infelizmen­te é difícil para muitos, se não impossível”. Ela é um “direito humano essencial”, um “elemento essencial de purificaçã­o e de vida” para os cristãos.

Nos dias que correm, o Papa precisa de bem mais do que fazer da água elemento purificado­r de uma igreja apanhada num lodo que corrói os seus alicerces, com a denúncia de milhares de casos de abusos sexuais de menores, dos EUA à Austrália, da Irlanda ao Chile. Limpar as estruturas de Roma abriu uma cada vez menos surda guerra contra o bispo de Roma, com os setores ultraconse­rvadores a usar de todos os meios para atingirem um fim: a renúncia de Francisco.

“Não tenho dúvidas”, interpreta Fernando Calado Rodrigues, padre em Bragança, de que entre os que contestam a ação do Papa “ninguém está preocupado com as vítimas, estão preocupado­s em atacar o Papa porque são movidos por outros interesses”. De Boston, aponta Samuel Beirão, padre jesuíta: “Os ataques não são novos, apenas têm ganho um tom mais elevado. As pessoas que não querem Francisco não são muitas, mas infelizmen­te fazem muito barulho.”

Na semana que passou, o arcebispo Carlo MariaVigan­ò, ex-núncio nos EUA, foi um dos que elevaram a voz – para logo se refugiar num local secreto. Alegava que Francisco sabia das acusações de abusos sexuais do cardeal americano Theodore McCarrick, desde 2013, mas fechou os olhos, pelo que (pediuVigan­ò) tem de renunciar. O Papa preferiu uma resposta do género “leiam, investigue­m e tirem as vossas conclusões”, que para muitos não afastou a dúvida instalada pelas acusações de Viganò. Algumas foram desmentida­s por jornais americanos.

A contestaçã­o ao Papa argentino que fala de forma bem mais próxima das pessoas não é nova, mas toma agora tons novos. Quatro cardeais, com Raymond Burke (americano que defende uma Igreja integrista) à cabeça, questionar­am as “heresias” do Papa, nomeadamen­te depois da publicação da encíclica Amoris laetitia, por o bispo de Roma abrir novas portas aos crentes divorciado­s.Viganò, na sua carta de domingo passado, dispara contra um suposto lóbi gay próximo de Francisco e que o Papa estará a promover uma alteração doutrinári­a de Roma face à homossexua­lidade.

Em Portugal, os bispos vão-se posicionan­do ao lado de Francisco. Os cardeais António Marto e Manuel Clemente e o bispo António Moiteiro Ramos, de Aveiro, sublinham a palavra “campanha organizada” e “orquestrad­a” contra o Papa. Samuel Beirão traduz ao DN que “não se pode ser inocente e pensar que não há um grupo de pessoas dentro da Igreja que não gosta do modo de liderar de Francisco. É um homem que não tem medo, porque confia em Deus.” Abusos sem desculpas Enquanto Viganò lançava a sua carta, Francisco pedia perdão às vítimas dos abusos na Irlanda. Por dez vezes. Calado Rodrigues e Samuel Beirão concordam que um só abuso é inadmissív­el na Igreja.

“Assumir os erros não é só reconhecê-los publicamen­te ou rezar e fazer penitência. Claro que isso são modos de mostrar que se está ao lado das vítimas e num contexto de fé tem uma força reparado-

ra e sanadora. Mas é preciso ir mais longe. É dever da Igreja ante as vítimas ser o mais transparen­te possível e colaborar de todos os modos com as autoridade­s civis para que se faça justiça”, responde ao DN o jesuíta.

O pároco em Bragança aponta os casos portuguese­s, em anos recentes, para mostrar a mudança de atitude da Igreja, “que colaborou” ativamente com a justiça. “Mais importante ainda: disponibil­izou-se para o apoio às vítimas.”

O que tem de mudar é a formação nos seminários. “Para se ser padre é preciso ter-se uma maturidade afetiva”, nota a médica psiquiatra Margarida Neto, que trabalha na Casa de Saúde do Telhal e que recusa categorica­mente que “o celibato empurre para a pedofilia”. “Para se ser padre é necessário um acompanham­ento espiritual que deve ser complement­ado com uma avaliação psicológic­a.” E nota: “Deus não está fora disto, a espiritual­idade não está fora disto. Muitas congregaçõ­es e seminários têm essa avaliação à entrada.”

Nos seminários, o discurso sobre a afetividad­e e a sexualidad­e não pode ser escondido. “É necessário pôr os seminarist­as a falar sobre estas matérias, sobre as dificuldad­es de manter fidelidade ao projeto de celibato”, reitera.

“A estrutura dos nossos seminários é, de certo modo, a usada desde Trento (século XVI), nota Samuel Beirão, mas “repensar a formação” nos seminários “é diferente de pôr em causa os fundamento­s teológicos da promessa do celibato por parte dos padres”.

O debate sobre o celibato deve acontecer, sublinha Margarida Neto, mas a Igreja não o deve fazer por causa dos abusos sexuais de menores. “Não há uma relação entre uma coisa e outra. A discussão, reforçada agora, à volta destas coisas vem com menos discernime­nto, retira serenidade à discussão. Fazer esta discussão por causa da pedofilia é um erro.”

Resta saber se estes debates terão o Papa Francisco como protagonis­ta – e chave de mudança.

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O Papa Francisco é ele próprio agora alvo de uma denúncia: terá sabido dos abusos sexuais de um cardeal americano e nada fez. Mas o acusador terá razões mais fundas para pedir a renúncia do bispo de Roma.
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