Diário de Notícias

A volta do y, do k e do w

- Ruy Castro

Não sei o que motivou a exumação, mas aí estão de novo, pimponas e lampeiras, as três letras que levaram quase um século excomungad­as.

Durante quase três anos, no começo dos anos 1970, vivi numa espécie de semi-ilegalidad­e em Lisboa. Tinha morada e emprego fixos e trazia todos os documentos em ordem e os impostos em dia. Mas carregava um nome que, apesar de ser composto de apenas três letras, continha uma que estava fora da lei: o y. Naquela época, num país de quase dez milhões de habitantes como Portugal e com milhares de cidadãos chamados Rui, eu devia ser um dos poucos Ruy – ou único, já que não conheci outro. Não seria isto a me obrigar a andar de cabeça baixa pelas ruas do Bairro Alto, mas eu sempre percebia uma sensação de estranhame­nto ao passar a alguém um papel ou cheque assinado com aquele arcaico e defunto y, de que Portugal já se livrara havia décadas.

Sim, Portugal decretara o fim do y (e do k, do w, do ph, do th, dos mm, dos mn e dos nn) na sua grande reforma ortográfic­a de 1911 – que o Brasil, teimoso e desobedien­te, não seguira. Com isso, naqueles primórdios do século, o milenar Portugal já modernizar­a a sua língua enquanto o Brasil, que se julgava avançado e do Novo Mundo, continuara a escrever coisas como phonograph­o, Nictheroy e hypertroph­ia. Para piorar, condenara seus Ruys a um lado do Atlântico enquanto os Ruis ficavam do outro.

Bem, sendo brasileiro no Brasil ou fora dele, eu me sentia autorizado a levar o meu y para onde quer que fosse – afinal, estava escorado pelas leis de meu país. Mas, na verdade, não estava. Em 1943, o Brasil adotara um novo formulário ortográfic­o que finalmente incorporar­a muitas das determinaç­ões portuguesa­s de 1911, entre as quais o banimento do y, do k, do w, dos ph e th e das consoantes dobradas. Donde, de um instante para outro, haviam surgido no Brasil palavras como fonógrafo, Niterói e hipertrofi­a. E os Ruys, passado a nascer Ruis.

Pelo menos, era isso o que dizia a lei. Mas, como todos no Brasil sabemos, as leis são como vacina – umas pegam, outras não. Eu, por exemplo, que nasci em 1948, já sob a vigência do dito formulário ortográfic­o, ainda fui registado como Ruy. Como foi possível? Duas hipóteses: na ida ao cartório, meu pai – um legítimo Ruy de 1910 –, ao passar seu nome para mim, pode ter exigido que seu y fosse respeitado. Ou foi o próprio tabelião, talvez já idoso e cansado, que, habituado a registar Ruys, cravou-me displicent­emente oy.E,sen doo Brasil como é, atravessei toda uma atribulada vida escolar, troquei várias vezes de documentos, comecei a assinar artigos em jornais ainda na adolescênc­ia e nunca fui solicitado a me tornar Rui.

E assim fomos levando, mas confesso que achava injusto viver com o meu nome na ilegalidad­e. Se o Brasil era um país cheio de gente legalmente registada como Kléber, Karen, Kátia, Wilson, Wallace e Washington, como oy,okeow podiam ser considerad­os ilegais?

Pois esse problema foi resolvido pela reforma ortográfic­a de 2009, que visou “unificar” a língua. Tanto quanto os portuguese­s, eu a detestei. E tanto que não a adotei – continuo até hoje a escrever como escrevia, e os revisores dos jornais e editoras para os quais trabalho que façam as correções, se quiserem. Nunca me conformei com o fim dos hífenes, dos tremas, de certos acentos agudos e com a aparição súbita na língua de palavras como autorretra­to, antissocia­l, coirmão e coerdeiro.

Mas, numa coisa, tenho de ser grato à nefanda reforma. Ela trouxe de volta oy,okeow.Nã os eio que motivou essa exumação, mas aí estão de novo, pimponas e lampeiras, as três letras que levaram quase um século excomungad­as. Não acredito que, por causa disso, em Portugal, os novos Ruis nascerão Ruys. No Brasil, onde se encaixam yy em qualquer nome – o país abunda de Dayanes, Thyagos, Rycharlyso­ns e outras cafonices –, tenho a certeza de que sim.

A volta do y poderá significar até um renascimen­to do nome Ruy entre os brasileiro­s. Porque, enquanto Portugal nunca deixou de produzir uma legião de Ruis, o nome Ruy no Brasil parecia estar se tornando um daqueles que em breve só seriam encontrado­s em cemitérios. Escritor e jornalista brasileiro, é autor de, entre outros livros, Carnaval no Fogo – Crônica de Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio

(Tinta-da-China).

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