O Elvis está vivo
O pior da discussão sobre a possibilidade desta espécie de conferência numa universidade é verificar que a própria Academia se está a deixar contaminar por essa nova realidade que é o império da opinião.
Ontem e anteontem, realizou-se na Universidade do Porto uma espécie de conferência sobre alterações climáticas. A esmagadora maioria dos conferencistas contraria o consenso científico sobre os efeitos do dióxido de carbono nessas mudanças. Gente que afirma, entre outras barbaridades, que o CO2 não provoca alterações meteorológicas ou climáticas, que as futuras gerações irão beneficiar com o acréscimo de dióxido de carbono na nossa atmosfera, que as fábricas alimentadas a carvão oferecem a eletricidade mais limpa do mundo. Ou seja, a dita conferência pretende promover e divulgar teses sem o menor fundamento e que vão ao arrepio do consenso da comunidade científica.
A primeira questão prende-se com a dita conferência se realizar na Universidade do Porto.
Uma universidade é um centro de formação e promoção do conhecimento científico. Ajudar a difundir posições que são a negação do método científico e que não passam de delírios achistas é exatamente o oposto do que deve ser o papel da Academia. Não me chateia rigorosamente nada que um qualquer pateta negue que a Terra é redonda ou que jure que o Elvis está vivo, já não me parece aceitável que centros científicos sirvam como difusores de disparates. Negar o conhecimento científico ou factos não é exprimir uma opinião, é disparatar.
Ouvi o argumento de que a promoção do debate de ideias faz parte do papel da Academia. Claro que sim. Simplesmente, para que esse debate se realize numa universidade as ideias têm de ter base científica. Uma escola que desenvolva debates sem o mínimo respeito pelo conhecimento científico converte-se num qualquer café de esquina. Espero ansiosamente debates apoiados pela Universidade do Porto sobre o criacionismo ou sobre os benefícios do tabaco para uma vida saudável.
Mas o pior da discussão sobre a possibilidade desta espécie de conferência numa universidade é verificar que a própria Academia se está a deixar contaminar por essa nova realidade que é o império da opinião.
Subitamente, toda e qualquer opinião sobre o que quer que seja tornou-se legítima. Melhor, os factos e a verdade deixaram de existir para se transformarem em opiniões. E quem quer que ponha em questão a difusão ou a simples enunciação de uma qualquer fantasia é imediatamente apelidado de repressor, um combatente contra a liberdade de expressão ou o novo insulto supremo um defensor do politicamente correto. A ignorância deixou de existir, toda a gente sabe tudo sobre tudo, desde física nuclear até à dose certa de açúcar num pastel de nata. Ou seja, tem uma opinião e sob o seu império essa vale tanto como a de um professor ou de um pasteleiro profissional.
Nunca como hoje o papel da Academia e de instituições semelhantes foi tão crucial para a preservação da ciência e até na defesa da verdade – podia dizer o mesmo do jornalismo e de muitas outras instituições. As redes sociais e a crise brutal dos mass media tradicionais criaram uma possibilidade quase ilimitada de uma qualquer empresa ou um qualquer indivíduo criar uma verdade ou uma opinião transmutada em facto – não será preciso lembrar várias campanhas políticas recentes. Aliás, não é em vão que os negacionistas das alterações climáticas têm tanto palco: são apoiados por empresas riquíssimas e por lóbis poderosos.
Que uma dúzia ou uns milhões de pessoas decidam fundar um movimento para negar que o homem pisou a Lua é lá com eles. Mas quando instituições que deviam preservar o conhecimento e ter uma ação pedagógica sobre a ciência decidem abrir-lhes as portas, é porque alguma coisa está profundamente errada.