À mercê de uma faísca
Nelson Rodrigues deixou, entre muitas, uma frase que pode explicar a tragédia que se abateu sobre o Rio no domingo passado, a destruição por incêndio do Museu Nacional. “Subdesenvolvimento não se improvisa”, disse Nelson. “É obra de séculos.” Da mesma forma, uma catástrofe como esta não acontece de uma hora para a outra. Vinha sendo meticulosamente preparada desde pelo menos 1960, quando o então presidente Juscelino Kubitschek mudou a capital do Brasil, do Rio para a quase lunar Brasília, ainda em construção, e deu as costas ao património histórico e artístico brasileiro, concentrado no Rio em grande parte.
Desde então passaram-se 58 anos, e o Brasil teve 17 presidentes da República, contando os ditadores militares, os vices que assumiram o cargo e, duas vezes cada um, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. Não é pouco – 17 administrações. E nenhuma delas, nesses 58 anos, jamais pôs os pés no Museu Nacional.
Que Fernando Collor, Lula, Dilma e, naturalmente, Michel Temer nunca tivessem aparecido por lá, entende-se – são ignorantaços, devem achar que um museu desses só existe para fins turísticos. Mas a mesma acusação pode ser feita a um homem que sempre se apresentou como um intelectual, um sociólogo – Fernando Henrique Cardoso. Entre os professores, antropólogos e historiadores do museu, devia haver vários que foram seus colegas em outras instituições e em outros tempos. Mas nem estes, os mais sofisticados do Brasil, FHC foi visitar. E por que iria? Melhor do que todos, sabia que o passado – representado por múmias, pedras, ossos – não dá futuro. Não rende votos.
O Museu Nacional foi fundado há 200 anos pelo rei D. João VI, mas contém inúmeras peças de mil ou dois mil anos e outras cuja datação beira o inacreditável. Sua coleção não interessava apenas ao Brasil – era um riquíssimo complemento à História de Portugal, Egito, Grécia, África e das culturas indígenas, as nossas e as dos vizinhos. Todos esses países saíram mais pobres do incêndio. No dia do bicentenário do museu, em abril último, seus diretores armaram uma pequena comemoração – não havia dinheiro nem motivo para uma grande. Pois, mesmo assim, nenhum dos ministros do atual governo, nem o da Educação, nem o da Cultura, que lhe dizem respeito, dignou-se a comparecer.
Tivessem ido e circulado por suas salas e dependências, e veriam o fascinante espetáculo das preciosidades à mercê dos cupins, poeira, infiltrações, instalações elétricas clandestinas e fios desencapados, já se preparando para o grande incêndio que se prometia. Não se pense que os funcionários estavam alheios a tudo isso – ao contrário, foram heróis em manter o museu funcionando (andou fechado por abandono, em 2014, no governo Dilma). E, quando se sabe que o orçamento com que trabalhavam anualmente era, em 2014, de R$ 515 mil anuais – menos de 130 mil euros –, é de se perguntar em que país estamos. O valor de R$ 515 mil é tão irrisório que serve no máximo como troco nas operações corruptas dos políticos e governantes (os ex e os atuais) investi-gados pela Operação Lava-Jato – e, de lá para cá, ainda diminuiu. Naquele ano, aliás, o museu conseguiu uma verba extra de R$ 20 milhões da câmara carioca, que poderia ter resolvido os seus problemas. Esse dinheiro, no entanto, foi “contin-genciado“, ou seja, engavetado pelo governo federal, e nunca chegou ao museu. A presidente avara e amarga chamava-se Dilma Rousseff.
Que a morte do Museu Nacional sirva ao menos para proteger e salvar as muitas outras instituições brasileiras ainda sediadas no Rio (e historicamente abandonadas por Brasília) que ainda correm risco. Algumas delas são o Jardim Botânico, o Observatório Nacional, o Instituto Oswaldo Cruz, a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Instituto Histórico e Geográfico, o Museu Histórico, a Escola Nacional de Música, o Arquivo Nacional, a Academia Brasileira de Ciências, o Palácio do Itamaraty, o Palácio Guanabara, o Palácio Laranjeiras e, claro, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a primeira do Brasil e à qual o Museu Nacional era subordinado. Qualquer uma dessas instituições, quase todas criadas pelos nossos Pedros imperadores e que tanto nos ligam a Portugal, está à mercê de uma faísca.
Voltando a Nelson Rodrigues, nenhum país pode dizer-se desenvolvido se não se sustentar sobre o seu passado. O presente é vulgar demais e o futuro, à vista deste, talvez nem devesse existir.
“Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos”, disse Nelson. Da mesma forma como uma catástrofe como o incêndio do Museu Nacional não acontece de uma hora para a outra.
Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros livros, O Anjo Pornográfico – A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).