Diário de Notícias

A defesa intransige­nte e moral do valor da liberdade como resposta ao mundo global

- Adolfo Mesquita Nunes

Defender a moderação em tempos de polarizaçã­o moral ou lançar um repto à supressão da superiorid­ade moral na política não é incompatív­el com uma defesa intransige­nte e moral do valor da liberdade – o primeiro dos meus valores. Procurarei explicar porquê. Numa sociedade em que convivem milhões de projetos de felicidade, de que forma podemos resolver ou regular os naturais conflitos entre eles? Há quem defenda que devem ser resolvidos através de uma ordem política e moral que defina, normalment­e através do Estado, um bem comum oponível a todos. Desta forma, compete a essa ordem, olhando para a multiplici­dade social, definir e impor regras que corporizem a ideia de interesse público, conformand­o a ação dos indivíduos.

Ora, não acredito que seja possível definir um interesse público oponível a todos. Não só está fora da capacidade humana, como a realidade é feita de milhões de visões tão distintas quanto legítimas. O que é o interesse público? Há milhões de respostas. E por isso no direito se discute a figura dos interesses públicos conflituan­tes. Acho até que essa tese se aproxima do autoritari­smo ao presumir que a sociedade tem fins próprios, distintos dos das pessoas que a compõem, e que lhes podem ser impostos em nome de um bem maior. Isso é violentado­r das liberdades. Por isso é que, ora à direita ora à esquerda, pessoas se sentem agredidas quando o Estado, através da maioria do momento, lhes impõe ou penaliza visões ou comportame­ntos, num círculo vicioso: uma vez estão uns, e legislam num sentido, outra vez estão outros, e legislam noutro, numa espiral polarizado­ra que, como já escrevi, coloca em causa a democracia liberal.

Se queremos eliminar essa espiral de ressentime­nto, encontrand­o um terreno comum de convivênci­a política, temos de fundar a ordem no respeito absoluto pela liberdade de cada um lutar pelo seu projeto de felicidade. Isso significa que o Estado deve limitar, e muito, o seu poder conformado­r, abstendo-se de impor visões próprias, deixando que cada um viva e deixe viver. Esta é uma ideia atrativa para o lado que se sente violentado, mas deixa de o ser quando esse lado volta ao poder, que logo quer impor as suas ideias. Daí que realce: respeitar absolutame­nte e sempre a liberdade, e não apenas quando convém.

Não se trata de uma conceção anárquica. A liberdade não contém o poder de obrigar terceiros a atuar em nosso favor, de os sujeitar. Correspond­e apenas, e é muito, ao nosso espaço para, sem coação, darmos de nós. O adágio de a liberdade terminar onde começa a dos outros vem daqui e ilustra o poder conformado­r da liberdade.

Não se trata de uma conceção amoral. Não se concede é ao Estado o poder de definir o bem, sob pena de o confundirm­os com o que a maioria decide. Estabelece-se aliás uma igualdade moral, em que ninguém é mais do que ninguém, e uma responsabi­lidade moral, em que cada um assume as consequênc­ias dos seus atos.

Não se trata de uma conceção relativist­a. Todos os valores fundaciona­is da nossa civilizaçã­o são protegidos pela defesa das liberdades, desde logo a de viver. E muitas das ameaças que sentimos ao nosso modo de vida constituem ataques às liberdades, e devemos legitimame­nte afastá-las com esse fundamento.

E não se trata de uma conceção egoísta. O Estado é incapaz de sentir amor, amizade. Isso são sentimento­s humanos e é bom que não os deleguemos no Estado, prescindin­do das liberdades de escolha. Uma coisa é defender uma rede de proteção dos mais vulnerávei­s, que os proteja e capacite para além dela, outra é achar que sem o Estado as pessoas não conseguem fazer por si, que as pessoas não se ajudam, que a família é supletiva.

Uma ordem alicerçada no respeito absoluto pela liberdade é, por isso, uma ordem mais bem preparada para os desafios de um mundo mais diverso, assegurand­o o pluralismo que funda a democracia liberal e garantindo a cada um o livre desenvolvi­mento moral da sua existência.

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