Peso e medida
As pessoas dividem-se por muitas linhas, os que fazem ponte e o os que não fazem ponte, os que acham que os cientistas descobrem e os que acham que os cientistas inventam, os que mudam a voz quando falam ao telefone com os seus mais que tudo e os que não mudam. Mas a divisão mais fundamental é entre os que fazem médias e os que dizem que é impossível fazer uma média. Quanto dinheiro gastas por mês? Varia muito. Mas em média? Não dá para fazer uma média. Há pessoas rigorosas e pessoas não rigorosas. Tudo bem com ambas. O pior são aqueles que desconhecem, renunciam ou desprezam a virtude do rigor quando este é possível.
Há muitos anos não estava a ser rigoroso e ensinaram-me uma coisa. Fiz uma reparação qualquer em casa com uma pequena empresa, daquelas pequenas e médias que se esforçam por ultrapassar a mediocridade reinante nas pêemiés portuguesas, criando procedimentos, funções, renunciando ao reimproviso, o improviso repetido eternamente (num dos primeiros episódios de Ozark, na Netflix, o pai Marty explica aos filhos que uma família é como um small business). O primeiro contacto, para o orçamento, foi com as pessoas do escritório, e a pessoa em causa era muito bem apessoada, na substância e na forma, forma de trato bem entendido. Na semana seguinte os da obra terminaram a obra e contas, contas é com o escritório. Ah, disse eu, muito simpática aquela vossa colega do escritório. Simpática? Sim, repeti, e gira. Ele, face cavada, cigarro cimentado numa mão, a outra com a forma da mini que lá ia estar, olhou e disse: Gira? É gira para quem a come. Parabolizando o brutalismo do comentário, a lição era sobre o subjetivismo e o objetivismo, e a dissociação impossível entre experiência e juízo. Como sabemos o que sabemos, o bolo hegeliano, a miúda do escritório, a cidade onde não estivemos.
Gosto muito de partilhar as coisas parvas que os meus filhos dizem e como ambos, parvoíce e filhos, são coisa que abunda cá em casa, há sempre bom material. Dizem muita coisa não parva, mas isso guardo para a PME, mas vou fazer agora uma exceção, com o texto que o Jaiminho escreveu há semanas, na segunda classe: “O futuro. Era uma vez um futuro muito velho que quria estar no nosso presente mas o passado sabia que se ele conceguisse era muito injusto.” Nada mal, eu sei. É o problema da fita do tempo, a eterna discussão entre presentismo (os que acham que só o presente existe) e eternismo (os que acham que todo o tempo, presente, passado e futuro são igualmente reais), tudo bem capturado.
Claro que seria injusto o futuro vir para aqui atrapalhar as coisas todas, não esperar pela sua vez, vir dizer como é, ou como vai ser. Nem todos veem os futuros. A dupla Filóstrato/Kavafis já explicou que o futuro só os deuses sabem, o que é também, pensando bem, um pouco injusto para o futuro, os deuses saberem como ele é porque assim que sabem é que ele deixa mesmo de ser futuro, mas adiante, e a gente comum só sabe o que está a acontecer agora, mas os sábios, diz a dupla, sabem o que está para acontecer, que é menor injustiça perante o futuro, porque sábios são poucos e o que está para acontecer está quase quase (Os Sábios..., 1915).
O problema maior, disse Kavafis noutro lado (A Cidade, 1910), é que ao vivermos nas cidades onde vivemos destruímos a vida que podíamos ter em todas as outras cidades do mundo, sem navio nem estrada que nos leve lá (talvez por isso Ítaca, 1911, seja apenas para nos pormos a caminho, não para chegarmos). O presente que destrói o futuro. Nem navio, nem estradas. Injusto, Jaiminho? Nem pontes.
Na sexta foi ponte, e muita gente fez ponte. É coisa que não se me aplica, só faz ponte quem faz fins de semana, mas a ponte lá está, à nossa volta na cidade, menos trânsito, mais tranquilidade. Mas com a idade já não sou imune a pontes, o corpo e a mente sempre sem saber como se adaptar a uma sexta a saber a segunda, ou uma segunda a saber a sexta, já não sei bem. Baralha o calendário interno, que não é feito apenas de horas, mas de dias da semana. E de repente a cabeça pergunta que dia é hoje? De calendário, da semana, ou de qualquer coisa e são uns segundos de photo finish para respondermos a nós próprios, mais coisa menos coisa.
Isto das medidas de tempo, espaço e massa andam cada vez mais rigorosas, tem de se ter cuidado com o que se escreve. A única que ainda não era rigorosa era o quilo, que ainda era feita por referência a um bloco de metal que pesava um quilo, e estava guardado a três chaves em Paris, o problema é que esse quilo tem ficado com o tempo mais leve, mas como isso é uma impossibilidade lógica, porque ele é que é o quilo, quer dizer que nós estamos todos mais pesados. E para acabar com esta brincadeira, o quilo passa neste mês a ser definido, por um conjunto de sábios (daqueles que sabem o que vai acontecer?), com base em cálculos baseados, simplificando um pouco, na luz, que com conta peso e medida nos vão dizer o que é um quilo. Ou melhor, vão descobrir ou inventar o que vai ser um quilo.
Com a idade já não sou imune a pontes, o corpo e a mente sempre sem saber como se adaptar a uma sexta a saber a segunda, ou uma segunda a saber a sexta, já nem sei bem.