O Homem Que Era Quinta-Feira
Independentemente de outros méritos que o futuro lhe reconheça, o autor do frequentemente ridículo e gloriosamente aborrecido Quinta-Feira e Outros Dias – 2 contribuiu para criar e preservar um regime em que o seu livro pode ser recebido com total e tranquila indiferença.
Em 1908, mais de um século antes da concorrência, G. K. Chesterton publicou um dos três melhores livros de sempre com a palavra “Quinta-Feira” no título. O romance começa no subúrbio fictício de Saffron Park, onde Lucien Gregory (um poeta que na verdade é anarquista) e Gabriel Syme (um poeta que na verdade é agente da Scotland Yard) debatem os respectivos méritos estéticos do Caos e da Harmonia. Gregory afirma que um artista só na desordem se sente bem: “Se assim não fosse, o metropolitano seria a coisa mais poética do mundo.” Syme, que prefere exaltar a poesia “da lei, da ordem, e da respeitabilidade”, contrapõe que é isso mesmo: o caos é enfadonho e vulgar “porque nele, o comboio podia ir parar a qualquer parte, a Baker Street ou a Bagdad. Mas o Homem é um mágico, e a sua magia reside nisto: diz Estação Victoria e eis que chegamos a Victoria!”
As duas personagens são tipos facilmente identificáveis. Gregory é o radical impulsivo, refém dos seus entusiasmos, defendendo a “arte da indisciplina”; Syme é o adepto do regular funcionamento das instituições. Se o segundo tomo de Quinta-Feira e Outros Dias tem um público ideal (e não é claro que o tenha, ou que o deseje), serão não os Gregorys, mas os Symes – os afortunados capazes de reconhecer a presença do Sublime no comboio que chega ao sítio certo à hora certa, e de ouvir o canto das Musas nas regras protocolares adoptadas durante visitas de Estado à Suécia. “Dois coches levaram-nos em cortejo ao Palácio Real. O Rei acompanhou-me, enquanto a minha Mulher seguiu com a Rainha. O trajecto pelas ruas de Estocolmo, em marcha lenta com escolta militar, durou cerca de 15 minutos. Havia pessoas nos passeios que seguiam com naturalidade a pompa dos dois coches e, por vezes, acenavam amavelmente.” Quase é possível distinguir a silhueta de Gabriel Syme entre os amáveis acenos, e Gregory à retaguarda, a enforcar-se num abeto.
Eis um volume sobre política decorosamente purgado de retórica inflamada, ou sequer interessante. Não há promessas de sangue, suor e lágrimas, mas sim o formal agendamento de audiências. Não há afectos nem abraços, mas uma sugestão pragmática para se alterar a segunda alínea do artigo 129.º. Não há qualquer “espectro que paira sobre a Europa”; o que há é “o falhanço na aplicação dos mecanismos de supervisão multilateral previstos no Tratado de Maastricht”. Esta estratégia de enfado burocrático preventivo não será a mais indicada para um livro, qualquer que seja o género a que tente pertencer, mas é sempre uma mais-valia num regime democrático, em que o tédio processual é um excelente recurso para manter à distância pessoas cuja principal característica é a impaciente vontade de tornar as coisas “interessantes”.
Ainda assim, seria enganador reduzir o conteúdo deste segundo volume de memórias a uma dose de anestesia institucional ou até à prestação de contas sugerida no prefácio. Tal como no livro de Chesterton, há aqui um empolgante thriller metafísico. Num certo sentido, é o culminar lógico da trajectória de alguém cuja identidade enquanto figura pública foi cristalizando na soma de meia dúzia de episódios e chavões, muitos deles curiosamente evocativos do léxico dos contos-de-fadas: Aquele Que Nunca Se Engana, o Guardador de Tabus, o Pai do Monstro, o Príncipe Que Conduziu o Citroën Encantado Rumo ao Poder. Cifrada e semioculta nas margens de Quinta-Feira e Outros Dias, encontra-se a história de um Homem que conseguiu, praticamente sozinho e perante várias adversidades, salvar heroicamente um país inteiro, munido apenas da sua sagacidade, e das competências que lhe foram conferidas – pela Constituição e, supõe-se, pelo Destino.
A história começa – ou continua – depois da vitória eleitoral do PSD em 2011. E começa com problemas. O protagonista conhece os problemas, está familiarizado com os problemas, mas põe a hipótese de outros não estarem: “Receando que Passos Coelho pudesse não estar bem ciente da gravidade da situação económica portuguesa e das dificuldades que o esperavam, decidi sublinhar alguns pontos.” E depois sublinha alguns pontos. “Sublinhar alguns pontos”, aliás, é uma das armas mais eficazes no seu poderoso arsenal, e uma das que por vezes utiliza quando “receia” que alguém “não esteja bem ciente”, ou não tenha “a devida consciência”, embora nesses casos prefira a acção mais generosa de “lembrar” ou “recordar”. A Paulo Portas, por exemplo, são lembradas “as implicações formais de uma rutura do governo, de que muitos políticos não têm a devida consciência”; e até o líder da oposição é submetido à pedagogia do receoso lembrete: “Lembrei as regras europeias a que Portugal continuaria sujeito após as eleições, receoso de que António José Seguro não estivesse bem consciente delas.”
Isto costuma ser suficiente, excepto quando não é. Nesse caso, torna-se necessário relembrar aquilo que já foi lembrado antes, mesmo que o que tenha sido lembrado antes já fossem “pontos” previamente “sublinhados”. O primeiro-ministro é o principal alvo destes ultralembretes: “Repeti ao primeiro-ministro que tinha sido um erro manter o salário mínimo congelado durante três anos, como fizera em várias outras ocasiões”; “voltei a explicar o meu raciocínio, tal como já o tinha feito na reunião de quinta-feira, 20 de Outubro”; “face a esta afirmação, voltei a lembrar”, etc.
Ao neófito, o processo pode parecer um redundante excesso de zelo, até sermos confrontados com situações em que os primeiros-ministros não se lembram mesmo do que está a ser relembrado. Um episódio com Passos Coelho na página 65 (“Recordei-lhe a afirmação – de que já não se lembrava – que tinha proferido na AR durante a apresentação do Programa de Governo”) tem um eco na página 53 com José Sócrates que, devidamente recordado da legislação em apreço, confessa: “Já me tinha esquecido dessa Reforma do Arrendamento Urbano.”
Escusado será dizer que sublinhar, lembrar ou relembrar pontos não esgota sequer uma fracção das extraordinárias capacidades do protagonista, que também fornece conselhos. Aquando da escolha do primeiro elenco governativo (e depois de alguns “pontos” serem “sublinhados”) um certamente grato primeiro-ministro ouve a seguinte recomendação: “Acrescentei que, face às exigências com que seria confrontado, o governo deveria ser formado por pessoas competentes.” Muitas páginas e várias peripécias depois, quando um novo desafio se apresenta, o conselho ao parceiro de coligação não é menos lúcido: “Disse a Paulo Portas que o governo deveria delinear uma estratégia para enfrentar a nova situação e executá-la meticulosamente.”
Nem sempre os conselhos assumem formas tão estonteantemente específicas. Tudo é decidido com critério, em função das circunstâncias. Há alturas em que urge arregaçar as mangas e puxar da matemática: “Quanto à impossibilidade, em que o primeiro-ministro insistia, de obter receita equivalente por via do adicional à colecta, disse-lhe que a sua análise não era correcta. E, numa folha de papel, fiz um cálculo muito simples.” Noutras alturas, uma recomendação concreta não é sequer necessária. Basta “manifestar preocupação”, ou “chamar a atenção”, ou até “referir” aquilo que “se impõe”: “Foi logo na primeira reunião com o primeiro-ministro que chamei a sua atenção para o cuidado com que o executivo deveria conduzir o processo de privatizações”; “referi que se impunha actuar com muita ponderação.”
Escusado será dizer que muitos destes nobres esforços não colhem o efeito desejado, pois o sucesso de qualquer mensagem depende fatalmente da competência do receptor, e raros são os receptores à altura. Nada que surpreenda o protagonista, que não se deixa desanimar, nem mesmo perante a sucessão de dissabores que não o surpreendem: “fiquei a saber que já tinha enfrentado alguns contratempos nos contactos efectuados, o que em nada me surpreendeu”; “a reacção à comunicação ao País do primeiro-ministro foi, como eu esperava, extremamente negativa”; “passara a imagem, como eu antecipara...”; “afirmei ao
primeiro-ministro que nada disso me surpreendia”. O que não é surpreendente é que quase nada o surpreenda. Afinal de contas, estamos perante alguém que se prepara cuidadosamente para todas as eventualidades: “Não sou pessoa que decida de ânimo leve. Estudo, pondero e procuro obter o máximo de informação.” O mesmo, infelizmente, não sucede com outros, e disso são prova vários momentos penosos, que com certeza hesitou em preservar para a posteridade (”o primeiro-ministro mostrou-se surpreendido com a informação que lhe dei”; “o primeiro-ministro manifestou-se surpreendido com os dados quantitativos por mim referidos”; “o primeiro-ministro ficou surpreendido com as minhas observações”). E é com a mesma mistura de dor de alma e fidelidade à memória histórica que vai registando as variadíssimas ocasiões mágicas em que disse “Estação Victoria!” e o país chegou (com lamentável atraso) à Estação Victoria: “Recordei-lhe que as críticas tinham incidido precisamente sobre os pontos para os quais eu tinha chamado a sua atenção”; “Era óbvio para mim que a controvérsia iria acentuar-se. Foi o que aconteceu”; “A realidade da banca portuguesa veio demonstrar, pouco tempo depois, que eu tinha razão”.
Esta hiperpreparação não lhe confere propriamente omnisciência, mas apenas uma aguçada sensibilidade, tanto às circunstâncias materiais relevantes, como até a estados de alma individuais. É, por exemplo, impossível a qualquer pessoa “esconder” do protagonista aquilo que realmente pensa ou deseja. E muitos o tentam, com idêntico e catastrófico insucesso, seja Jerónimo de Sousa (”não gostou das perguntas que lhe coloquei e não escondeu um certo incómodo”) seja a generalidade da comunicação social, quando confrontada com indicadores económicos positivos (“muitos jornalistas e comentadores não conseguiram esconder a sua tremenda frustração”). Caso a última citação seja interpretada como má vontade para com a a imprensa, convém esclarecer que o protagonista não se furta a reconhecer-lhe o mérito, quando o mesmo é devido. Ao abordar a polémica da TSU – um problema, de resto, correctamente diagnosticado por si, e mal gerido por todos os outros envolvidos, até que nova intervenção sua conseguiu “salvaguardar o interesse nacional” – tem o cuidado de citar um título “apelativo” do Expresso: “Certidão de óbito da TSU assinada em Belém”. “Não andava longe da verdade”, confessa, dando renitentemente o braço a torcer.
Todos os exercícios autobiográficos são uma forma de autojustificação, e Quinta-Feira e Outros Dias pode parecer a espaços uma extensa resposta à velha parábola zen: qual é o som de uma mão a bater palmas? O que costuma ficar, filtrado pelas malhas do que não queria ser dito, é o esboço de uma personalidade. Há um número quase infinito de atributos que pode tornar uma personalidade interessante, e aqui está uma que sempre pareceu milagrosamente desprovida de todos eles, o que não será novidade para ninguém, até porque a capacidade de não ficar surpreendido parece contagiosa.
Animado por um conjunto reduzido de convicções (a importância da “estabilidade governativa” para criar um “clima de confiança”, a procura de “consensos”, um compromisso quase-estético com os “factos”, assente no domínio dos “dossiês” e no consenso entre “peritos”), Cavaco Silva encarnou uma variante específica da imaginação tecnocrata, uma visão da política que consiste fundamentalmente em administrar uma simpática e não muito promissora barafunda. A imaginação tecnocrata tem apenas um objectivo, que se confunde com o seu único receio: que as coisas mudem drasticamente em vez de ligeiramente, pois isso implicaria, por definição, ter de reaprender as regras do jogo. Qualquer alteração radical neutraliza a sua maior vantagem, que é a capacidade de compreender e explicar as coisas como elas são agora, em vez de como podem ou devem ser no futuro. Escolhas políticas transformam-se em meras iterações de comportamentos “responsáveis” e a ideia de orientações ideológicas mutuamente exclusivas é convertida na ideia de dificuldades técnicas que exigem soluções técnicas, serenamente administradas.
Esta comovente fantasia pretendeu substituir-se à tendência (aparentemente universal) da disputa partidária para, ao ver a eficácia eleitoral do seu reportório reduzida com a passagem do tempo, inflaccionar a retórica até cada divergência assumir proporções de ameaça existencial e cada solução definhar na direcção da simplicidade. E o que não falta no presente são exemplos de comboios interessantíssimos a caminho de qualquer parte – Baker Street ou Bagdad – conduzidos por quem nunca na vida teve ou terá pachorra para “sublinhar alguns pontos”, quanto mais repeti-los. Independentemente de outros méritos que o futuro lhe reconheça, o autor do frequentemente ridículo e gloriosamente aborrecido Quinta-Feira e Outros Dias - 2 tem pelo menos este: o de ter contribuído, com as suas virtudes e defeitos, para criar e preservar um regime em que o seu livro pode ser recebido com total e tranquila indiferença.