Reinaldo, ainda e sempre
Que os leitores de um jornal o disputassem a murro é algo que faz pensar, tamanha é hoje a crise da imprensa. Que esse jornal tivesse começado em Barcelos ainda mais impressiona. Que se chamasse Jornal do Repórter X é mesmo coisa bizarra. Mas verídica. Junto dos ardinas ou nas bancas de jornais, a freguesia chegava a vias de facto para comprar o periódico dirigido por Reinaldo Ferreira, o mais inventivo repórter português de todos os tempos.
Nado e criado em Lisboa, educado sem pai, enfermiço e frágil, Reinaldo cedo revelou peculiares inclinações literárias. Em jovem, ensaia o romance naturalista, prenhe de misérias morais, o que lhe vale o malicioso epíteto de “Zola da Almirante Reis”. Após uma fugaz passagem pelos escritórios de uma fábrica de fiação a Alcântara, dá entrada na redacção do vespertino republicano A Capital, e aí assina as primeiras críticas de cinema da imprensa portuguesa. É por essa altura que, disfarçando-se de mendigo, passa três dias e três noites junto dos miseráveis da capital, antecipando um género que teria em Günter Wallraf um dos seus mais famosos cultores (já agora, lembre-se também Roussado Pinto, o incrível, com Eu Fui Vagabundo). Há quem diga, no entanto, que Reinaldo Ferreira não fez reportagem alguma e que se limitou a posar para o fotógrafo em trajes de pedinte; o resto, o texto, saiu da sua imaginação prodigiosa. Estamos a falar de alguém que não hesitará em anunciar, nas páginas dos jornais, a fantástica descoberta no coração de Lisboa de uma cidade subterrânea com milhares de toupeiras humanas, gente que aí morava desde os tempos do terramoto. Ou de, num futuro próximo, projectar a construção de uma ponte transatlântica entre a Europa e a América, com término na serra de Monsanto. De alguém que se imaginou desembarcar no “aeródromo da Amadora”, vindo da China, ao fim de... 12 horas de voo.
Nunca se saberá se Reinaldo Ferreira esteve na Rússia dos sovietes. A resposta mais provável é não, obviamente. Mas, como também é óbvio, isso não o dissuadiu de organizar uma pungente despedida da família e amigos no porto de Lisboa, rumo a Moscovo, e de lá enviar sucessivas reportagens para o ABC, escritas num estilo antológico: “A revolução russa foi uma sacudidela de Sansão no templo granítico do Império.” Entre os portugueses que avistou na Rússia, encontravam-se o porteiro do Kremlin (!) e o embalsamador de Lenine. Noutra ocasião, jurou ter encontrado um monge ortodoxo russo nos calabouços do Governo Civil de Lisboa, vítima do ódio de Rasputine. Entrevistou-o, claro. Publicou também uma entrevista a Conan Doyle, sem nunca ter falado com ele, e asseverou que Mata-Hari passara por Portugal em trabalho de espionagem. Se a maioria dos colegas encarou a notícia como mais uma das “blagues do Reinaldo”, António Sardinha exigiu, inflamado, que o repórter fosse levado a conselho de guerra por crime de alta traição. Não muito depois, enche a primeira página d’O Século com a notícia do homicídio de uma estrangeira, morta à facada numa pensão da Rua dos Fanqueiros. Tudo não passou de uma encenação urdida entre Reinaldo, vestido de mulher com um véu e uma peruca loura, e Stuart Carvalhais, no papel de amante homicida; nessa trama da Baixa, a única vítima terá sido uma galinha, cujo sangue tingiu a cena do crime violento.
Reinaldo Ferreira viveu tão intensamente como as personagens da sua imaginação. Nas fotografias, vemo-lo desgrenhado, de cabelos revoltos e olhar alucinado, fumando cigarros atrás de cigarros, a escrever furiosamente: reportagens, novelas, folhetins, peças de teatro (1808, interpretada por Palmira Bastos), argumentos de cinema, tudo tentou para ganhar a vida, passada em constante aperto. Foi precursor do cinema, realizou fitas como O Groom do Ritz ou O Táxi n.º 9297, este último inspirado no homicídio da actriz Maria Alves, cujo corpo estrangulado apareceu aos Anjos, arremessado do interior de um táxi – o n.º 9297 – da Cooperativa de Chauffeurs Palhinhas. Outro dos seus filmes, Rita ou Rito?, curta-metragem cómica de 1927, baseou-se num picaresco caso de lesbianismo ocorrido em Aveiro, onde a chefe da estação telégrafo-postal de Vagos seduzira a Dr.ª Ambrosina Leite de Almeida, médica na localidade de Palhaça. Aí, a realidade ultrapassara a imaginação do Repórter X, o mesmo sucedendo com uma reportagem sua, de Maio de 1928, sobre o duelo à pistola, junto à Estrada dos Carvalhos, entre o vice-reitor da Universidade do Porto, Lopes Martins, e Alfredo Magalhães, ex-ministro da Instrução, em que os bravos contendores tiveram o bom senso de se abster de acertar um no outro.
Ao contrário do que se possa pensar, Reinaldo Ferreira não era um marginal ou um maldito. Num banquete em sua homenagem, num café da Avenida, estiveram presentes Ferreira de Castro, António Ferro, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, e as mais altas chefias policiais não lhe recusavam entrevistas. Fez a cobertura do caso Angola e Metrópole, esteve na Haia a assistir ao julgamento dos cúmplices de Alves Reis, denunciou a ditadura de Primo de Rivera e a prostituição infantil na “Lisboa Negra”, foi colaborador efectivo de importantes jornais franceses e dirigiu a Agência Americana de Paris (onde viu dançar Isadora Duncan e garantiu ter assistido a uma execução na guilhotina). Instalado na Invicta, os leitores portuenses mimaram-no com presuntos e queijos, azeite e vinhos, um cinzeiro de prata, uma pasta de cabedal. O seu jornal chegou a alcançar a espantosa tiragem de 40 mil exemplares e o estilo de reportagem à sensation, com factos insólitos e crimes hediondos, criou escola na imprensa da época, prolongando-se até aos nossos dias, sedentos de fake news. Na esteira deste sucesso, aparecem publicações concorrentes, como o Detective, do seu velho amigo Mário Domingues, e O Espião, de Jorge Ramos, o que em boa medida precipita a derrocada da empresa jornalística de Ferreira, para o qual contribuiu a sua completa inépcia em matéria de negócios e a desastrosa gestão financeira de António Botto, contratado por caridade. Desinteressado da política (“meu general, cá para mim a política pertence sempre à página dos anúncios”, disse um dia a Gomes da Costa), colaborador de jornais de todas as tendências – monárquicas e católicas, republicanas e maçónicas, anarquistas e revolucionárias –, Reinaldo de Azevedo e Silva Ferreira fica na História por interposta pessoa. Foi ele quem inventou as célebres últimas palavras de Sidónio Pais, assassinado na estação do Rossio: “Morro bem... Salvem a Pátria!” (na realidade, bem mais prosaica, o Presidente-Rei terá dito, em agonia: “Não me apertem, rapazes!”).
O seu tempo da imprensa é o das redacções fumarentas e ruidosas, onde só se começava a escrever ao final da tarde, noite dentro, até às quatro, cinco da manhã; durante o dia, os jornais eram salas de visitas, onde se aparecia para saber das últimas e dar dois dedos de conversa. No caso de Reinaldo, a mãe, mulher e filhos eram presença diária na redacção do Repórter X, onde estanciavam em ameno convívio com quem entrasse. Enquanto isso, Reinaldo corria Lisboa inteira, da morgue ao governo civil, das esquadras aos cabarés, almoçava bifes e lulas guisadas nos galegos da Baixa, passava as noites no Parque Mayer em demanda de escândalos e sensações (numa das suas reportagens, fez-se prender por artistas de revista disfarçados de polícias). Atraiçoado pela primeira mulher, entrega-se às drogas, experiência que contará em Memórias de Um ex-Morfinómano. Uma vez mais, mentiu, pois nunca chegará a curar-se do vício. A recaída na morfina faz com que a sua segunda mulher o abandone, precipitando a queda final. Vitimado por uma broncopneumonia, o Repórter X morre novo, com 38 anos de vida e 22 de jornalismo. Meia dúzia de amigos estiveram no funeral.