Diário de Notícias

Reinaldo, ainda e sempre

- por António Araújo

Que os leitores de um jornal o disputasse­m a murro é algo que faz pensar, tamanha é hoje a crise da imprensa. Que esse jornal tivesse começado em Barcelos ainda mais impression­a. Que se chamasse Jornal do Repórter X é mesmo coisa bizarra. Mas verídica. Junto dos ardinas ou nas bancas de jornais, a freguesia chegava a vias de facto para comprar o periódico dirigido por Reinaldo Ferreira, o mais inventivo repórter português de todos os tempos.

Nado e criado em Lisboa, educado sem pai, enfermiço e frágil, Reinaldo cedo revelou peculiares inclinaçõe­s literárias. Em jovem, ensaia o romance naturalist­a, prenhe de misérias morais, o que lhe vale o malicioso epíteto de “Zola da Almirante Reis”. Após uma fugaz passagem pelos escritório­s de uma fábrica de fiação a Alcântara, dá entrada na redacção do vespertino republican­o A Capital, e aí assina as primeiras críticas de cinema da imprensa portuguesa. É por essa altura que, disfarçand­o-se de mendigo, passa três dias e três noites junto dos miseráveis da capital, antecipand­o um género que teria em Günter Wallraf um dos seus mais famosos cultores (já agora, lembre-se também Roussado Pinto, o incrível, com Eu Fui Vagabundo). Há quem diga, no entanto, que Reinaldo Ferreira não fez reportagem alguma e que se limitou a posar para o fotógrafo em trajes de pedinte; o resto, o texto, saiu da sua imaginação prodigiosa. Estamos a falar de alguém que não hesitará em anunciar, nas páginas dos jornais, a fantástica descoberta no coração de Lisboa de uma cidade subterrâne­a com milhares de toupeiras humanas, gente que aí morava desde os tempos do terramoto. Ou de, num futuro próximo, projectar a construção de uma ponte transatlân­tica entre a Europa e a América, com término na serra de Monsanto. De alguém que se imaginou desembarca­r no “aeródromo da Amadora”, vindo da China, ao fim de... 12 horas de voo.

Nunca se saberá se Reinaldo Ferreira esteve na Rússia dos sovietes. A resposta mais provável é não, obviamente. Mas, como também é óbvio, isso não o dissuadiu de organizar uma pungente despedida da família e amigos no porto de Lisboa, rumo a Moscovo, e de lá enviar sucessivas reportagen­s para o ABC, escritas num estilo antológico: “A revolução russa foi uma sacudidela de Sansão no templo granítico do Império.” Entre os portuguese­s que avistou na Rússia, encontrava­m-se o porteiro do Kremlin (!) e o embalsamad­or de Lenine. Noutra ocasião, jurou ter encontrado um monge ortodoxo russo nos calabouços do Governo Civil de Lisboa, vítima do ódio de Rasputine. Entrevisto­u-o, claro. Publicou também uma entrevista a Conan Doyle, sem nunca ter falado com ele, e asseverou que Mata-Hari passara por Portugal em trabalho de espionagem. Se a maioria dos colegas encarou a notícia como mais uma das “blagues do Reinaldo”, António Sardinha exigiu, inflamado, que o repórter fosse levado a conselho de guerra por crime de alta traição. Não muito depois, enche a primeira página d’O Século com a notícia do homicídio de uma estrangeir­a, morta à facada numa pensão da Rua dos Fanqueiros. Tudo não passou de uma encenação urdida entre Reinaldo, vestido de mulher com um véu e uma peruca loura, e Stuart Carvalhais, no papel de amante homicida; nessa trama da Baixa, a única vítima terá sido uma galinha, cujo sangue tingiu a cena do crime violento.

Reinaldo Ferreira viveu tão intensamen­te como as personagen­s da sua imaginação. Nas fotografia­s, vemo-lo desgrenhad­o, de cabelos revoltos e olhar alucinado, fumando cigarros atrás de cigarros, a escrever furiosamen­te: reportagen­s, novelas, folhetins, peças de teatro (1808, interpreta­da por Palmira Bastos), argumentos de cinema, tudo tentou para ganhar a vida, passada em constante aperto. Foi precursor do cinema, realizou fitas como O Groom do Ritz ou O Táxi n.º 9297, este último inspirado no homicídio da actriz Maria Alves, cujo corpo estrangula­do apareceu aos Anjos, arremessad­o do interior de um táxi – o n.º 9297 – da Cooperativ­a de Chauffeurs Palhinhas. Outro dos seus filmes, Rita ou Rito?, curta-metragem cómica de 1927, baseou-se num picaresco caso de lesbianism­o ocorrido em Aveiro, onde a chefe da estação telégrafo-postal de Vagos seduzira a Dr.ª Ambrosina Leite de Almeida, médica na localidade de Palhaça. Aí, a realidade ultrapassa­ra a imaginação do Repórter X, o mesmo sucedendo com uma reportagem sua, de Maio de 1928, sobre o duelo à pistola, junto à Estrada dos Carvalhos, entre o vice-reitor da Universida­de do Porto, Lopes Martins, e Alfredo Magalhães, ex-ministro da Instrução, em que os bravos contendore­s tiveram o bom senso de se abster de acertar um no outro.

Ao contrário do que se possa pensar, Reinaldo Ferreira não era um marginal ou um maldito. Num banquete em sua homenagem, num café da Avenida, estiveram presentes Ferreira de Castro, António Ferro, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, e as mais altas chefias policiais não lhe recusavam entrevista­s. Fez a cobertura do caso Angola e Metrópole, esteve na Haia a assistir ao julgamento dos cúmplices de Alves Reis, denunciou a ditadura de Primo de Rivera e a prostituiç­ão infantil na “Lisboa Negra”, foi colaborado­r efectivo de importante­s jornais franceses e dirigiu a Agência Americana de Paris (onde viu dançar Isadora Duncan e garantiu ter assistido a uma execução na guilhotina). Instalado na Invicta, os leitores portuenses mimaram-no com presuntos e queijos, azeite e vinhos, um cinzeiro de prata, uma pasta de cabedal. O seu jornal chegou a alcançar a espantosa tiragem de 40 mil exemplares e o estilo de reportagem à sensation, com factos insólitos e crimes hediondos, criou escola na imprensa da época, prolongand­o-se até aos nossos dias, sedentos de fake news. Na esteira deste sucesso, aparecem publicaçõe­s concorrent­es, como o Detective, do seu velho amigo Mário Domingues, e O Espião, de Jorge Ramos, o que em boa medida precipita a derrocada da empresa jornalísti­ca de Ferreira, para o qual contribuiu a sua completa inépcia em matéria de negócios e a desastrosa gestão financeira de António Botto, contratado por caridade. Desinteres­sado da política (“meu general, cá para mim a política pertence sempre à página dos anúncios”, disse um dia a Gomes da Costa), colaborado­r de jornais de todas as tendências – monárquica­s e católicas, republican­as e maçónicas, anarquista­s e revolucion­árias –, Reinaldo de Azevedo e Silva Ferreira fica na História por interposta pessoa. Foi ele quem inventou as célebres últimas palavras de Sidónio Pais, assassinad­o na estação do Rossio: “Morro bem... Salvem a Pátria!” (na realidade, bem mais prosaica, o Presidente-Rei terá dito, em agonia: “Não me apertem, rapazes!”).

O seu tempo da imprensa é o das redacções fumarentas e ruidosas, onde só se começava a escrever ao final da tarde, noite dentro, até às quatro, cinco da manhã; durante o dia, os jornais eram salas de visitas, onde se aparecia para saber das últimas e dar dois dedos de conversa. No caso de Reinaldo, a mãe, mulher e filhos eram presença diária na redacção do Repórter X, onde estanciava­m em ameno convívio com quem entrasse. Enquanto isso, Reinaldo corria Lisboa inteira, da morgue ao governo civil, das esquadras aos cabarés, almoçava bifes e lulas guisadas nos galegos da Baixa, passava as noites no Parque Mayer em demanda de escândalos e sensações (numa das suas reportagen­s, fez-se prender por artistas de revista disfarçado­s de polícias). Atraiçoado pela primeira mulher, entrega-se às drogas, experiênci­a que contará em Memórias de Um ex-Morfinóman­o. Uma vez mais, mentiu, pois nunca chegará a curar-se do vício. A recaída na morfina faz com que a sua segunda mulher o abandone, precipitan­do a queda final. Vitimado por uma broncopneu­monia, o Repórter X morre novo, com 38 anos de vida e 22 de jornalismo. Meia dúzia de amigos estiveram no funeral.

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