Diário de Notícias

Como as nuvens nos aconselham sobre touradas

- Ferreira Fernandes

Abílio, de sachola, e Hugo, com bata branca de farmacêuti­co, fazem-se fotografar sobre um penedo. Eles esperavam uma visita e esta foi igualmente fotografad­a: chegou girando seis hélices. Desde outubro do ano passado, quando arderam a casa de Abílio, na aldeia do Penedo, e a farmácia de Hugo, numa aldeia maior, Lajeosa do Dão, o drone entrega os medicament­os por lugarejos perdidos da Beira Interior. No suplemento 1864, páginas adiante, os repórteres Ricardo J. Rodrigues e Jorge Simão mostram esta modernidad­e maravilhos­a.

O caderno 1864, que acompanha todas as semanas a edição do DN, escolhemos fazê-lo sempre unitemátic­o mas variado. Isto é, vive à volta de um só tema mas sobre ele, surpresas – o próprio dos jornais é só contar aquilo que é digno de ser publicado. O tema desta semana é “Na nuvem”. E se sobre isso podemos falar desse armazém virtual onde a internet deposita tudo ou quase – a cloud do Google e arredores –, também lá cabem os comprimido­s para a osteoporos­e que nas aldeias beirãs caem das nuvens.

Bela escolha, falar de nuvens. É pena não se falar mais delas. São vaidosas, vagabundas, efémeras e, por vezes, não se importam de se metamorfos­ear à frente do nosso olhar. São o museu do pobre e dos viajantes desde tempos imemoriais. A mesma nuvem (ou uma sua perene irmã) pousada no tampo da Table Mountain, no sopé da qual hoje está a Cidade do Cabo, foi admirada pelos pastores khoisan, pelo navegador Bartolomeu Dias a caminho da Boa Esperança e olhada pelo cirurgião Christiaan Barnard na manhã em que fez o primeiro transplant­e de coração.

O grito de O Grito, de Munch, está enquadrado por um céu nacarado que muitos norueguese­s reconhecem já ter visto um dia qualquer no horizonte do grande norte. O belga Magritte contrapunh­a a imagem sisuda e escura dos funcionári­os de chapéu de coco com o esplendor da mesma silhueta em forma de cumulus. E as nuvens tremendas em dia de tempestade na Cornualha podem dar a sensação de déjà vu para quem já esteve frente ao quadro a óleo Naufrágio de Cargueiro, de William Turner, pendurado na Gulbenkian. As nuvens são a obra-prima a que todos, e gratuitame­nte, temos direito.

Em 1802, o inglês Luke Howard resolveu dar uma conferênci­a para pôr aquelas coisas celestes com alguma ordem. Howard era um amante de nuvens e amador das ciências, farmacêuti­co. Está a ver, Sr. Hugo Ângelo, farmacêuti­co de Lajeosa do Dão, como no vasto mundo há tanta coincidênc­ia? Então, o inglês propôs uma classifica­ção para as nuvens e chamou-lhes cirrus, stratus, cumulus, nimbus... Pareciam nomes de imperadore­s romanos, mas era um começo para ficarmos a saber cientifica­mente mais. Além daquela beleza que nos faz darmos pelo céu, as nuvens são também outra coisa.

Aliás, já acontecera antes. A Coluna de Nuvens, no Antigo Testamento, é nomeada por ter indicado o caminho ao povo judaico na partida do Egito. A leitura das formas e das metamorfos­es das nuvens sempre indicaram aos homens o tempo que vinha aí, muito antes de a meteorolog­ia nos avisar com semanas de antecedênc­ia. Leonardo daVinci, artista e cientista ao mesmo tempo, aconselhou dar atenção às manchas de humidade num muro e às nuvens. E porquê? Porque os objetos sem forma empurram para a imaginação.

E não, a imaginação não é só meio de transporte que nos leva a lugares oníricos. Claro, as nuvens são terreno fértil para os poetas e para os pintores mas, porque incentivam a imaginação, dão-nos também a conhecer a terra onde pomos os pés. No centro de França, cientistas do CNRS (Centre Nationale de la Recherche Scientifiq­ue), um dos centros de pesquisa mais reputados do mundo, sobem todas as semanas ao cimo do Puy de Dôme – são caçadores de nuvens. Levam um pequeno cilindro que enchem de nuvem. Depois, analisam-na: as gotículas têm bactérias que produzem proteínas que gelam a água, influencia­ndo a queda em forma de chuva ou neve e levam as bactérias de volta ao solo... As nuvens têm segredos e é bom querer saber deles.

É pena não falarmos mais de nuvens. Aquilo que nos estimula a imaginação permite-nos ver mais longe e bem. Sei lá, uma cirrus pode acirrar-nos evidências; uma cumulus pode evitar um cúmulo péssimo; uma nimbus pode fazer sair do nimbo os políticos que lá se refugiam. Por falar nisso, para evitar Bolsonaro era bom que políticos, contentes com a justeza das suas causas, se dessem conta de que, na boa prática e melhor governo, as más tradições são para ser combatidas melhorando o nível de consciênci­a dos cidadãos. Não por decreto. Há demasiados portuguese­s ofendidos com o fim das touradas. As nuvens dizem-nos que era melhor termos os pés na terra para decidirmos sobre esse assunto.

O Abílio, apesar da sachola, percebeu a bondade do drone.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal