Testemunhas protegidas em Portugal: mudar de nome e até de cara
São testemunhas e familiares que contribuem para a aplicação da justiça em Portugal. Podem mudar de nome, de casa, de país e até fazer uma plástica para alterar a fisionomia. Desde 2003 já houve 95 testemunhas e familiares a beneficiar deste programa conf
Quando António Benvinda testemunhou nas primeiras sessões do julgamento em que dois ex-inspetores da Polícia Judiciária e um cabo da GNR são acusados de corrupção por colaborarem com traficantes de droga sul-americanos, no tribunal só se ouviu a sua voz, através da videoconferência. O seu rosto não foi visto pelos presentes na sala de audiência nem é conhecida a sua localização. É um exemplo de uma testemunha protegida pelo Estado português que acedeu contar tudo o que sabia, em troca de segurança especial para si e para a sua família, após ameaças contra a sua vida. Este antigo inspetor da PJ e alguns dos seus familiares diretos são algumas das 30 pessoas que atualmente estão protegidas ao abrigo deste programa especial. No total são 15 testemunhas e outros tantos familiares. Apenas quatro são estrangeiros.
Desde 2003, já beneficiaram deste programa 95 pessoas, na maioria em casos relativos a associações criminosas ligadas ao tráfico de droga, ao tráfico de pessoas e ao crime mais violento.
É a Comissão de Programas Especiais de Segurança (CPES) que assegura a proteção destas testemunhas. Pode passar por medidas como uma operação plástica, a mudança de nome e alteração pontual de residência ou até a deslocalização para o estrangeiro. Funcionando na dependência do Ministério da Justiça, este organismo, vulgarmente conhecido como comissão de proteção de testemunhas, está em atividade desde 2003, ano em que foi promulgada a lei que regulamenta estes programas. Já existia antes proteção de testemunhas, mas foi com esta legislação que ficou definida uma ação mais sistemática e permanente.
Foi o processo FP-25 e o homicídio de um dos arrependidos que colaboraram com a justiça que le-
vou a que esta legislação fosse aperfeiçoada e implementada através da lei 93/99, regulamentada em 2003. Elementos arrependidos colaboraram com a justiça. O processo Casa Pia foi outro que motivou a implementação desta comissão.
“Desde 2003 até 2018, inclusive, beneficiaram de programas especiais de segurança 95 pessoas, tendo 47 sido testemunhas e 48 familiares. 72 dos beneficiários têm nacionalidade portuguesa e 23 têm nacionalidade estrangeira”, disse ao DN, por escrito, a comissão que é presidida desde a sua criação pelo juiz-conselheiro jubilado Armando Leandro. Só para crimes graves Não é qualquer testemunha que pode ser integrada nestes planos. É exigido que estejam em causa crimes graves. De acordo com a comissão, nestes 15 anos, “os crimes que determinaram a aprovação e implementação dos programas especiais de segurança foram os de corrupção, tráfico de pessoas, tráfico de estupefacientes, lenocínio, homicídio, sequestro e crime de explosão, na sua grande maioria em contexto de suspeita de associação criminosa”.
Quase tudo é secreto nesta comissão constituída por um presidente e por um secretário, nomeados pelo Ministro da Justiça, um magistrado judicial e um magistrado do Ministério Público com experiência no domínio do combate à criminalidade violenta e organizada, indicados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Conselho Superior do Ministério Público, e por um representante do Ministro da Administração Interna. As decisões são tomadas por maioria de voto simples, com o presidente a ter voto de qualidade. Os membros são nomeados por um período de três anos, renováveis.
São estas pessoas que irão procurar dar a melhor resposta de proteção a testemunhas, e seus familiares, que possam ter a sua segurança ameaçada por contarem a verdade às autoridades em processos cujos crimes tenham uma moldura penal superior a oito anos. Inicialmente é o Ministério Público que deve promover junto do juiz de instrução o pedido de proteção. Aprovado esse requisito, o caso é enviado à comissão que irá aprovar e diligenciar para que seja efetivado. Os seus membros é que decidem se o caso deve ter um programa especial e são, depois, quem vai estabelecer e assegurar o cumprimento do plano de segurança adequado à testemunha.
Nos casos mais simples, em que é garantida proteção através de unidades especializadas da PSP e da GNR (há o exemplo de Carolina Salgado durante uma fase do processo Apito Dourado), as autoridades judiciárias decidem e o processo nem vai à comissão. Aqui são as situações de crimes graves que filtram o acesso a programas em que a testemunha pode mudar de nome, ser deslocalizada com ajuda do Estado – e já há houve casos em que são mudados para o estrangeiro, embora sejam uma minoria, já que a “maioria fica em território nacional” – e até fazer cirurgias plásticas para mudar o aspeto. Para aceder a este programa, as suas declarações têm de constituir um contributo probatório de relevo, tal como as ameaças a familiares, no caso de pedirem a sua proteção, têm de estar comprovadas e devem envolver risco para a sua vida ou integridade física. Recebem subsídios e apoios No caso de António Benvinda, o seu nome é público, já que é arguido no mesmo processo. A sua integração no programa teve em conta o contributo dado para a descoberta da verdade e esse testemunho irá ser decisivo para a atenuação da pena. Mas este português que deixou a PJ há mais de 20 anos e passou a estar ligado ao crime pode ter um novo nome e beneficiar de outras medidas de proteção, incluindo os familiares que foram ameaçados. A CPES nunca se pronuncia sobre os casos concretos.
Não há um limite para o fim do programa, embora muitos já tenham sido dados como findados, como se comprova pelos números fornecidos pela CPES. “A duração dos referidos programas é muito variável, consoante a necessidade específica de proteção em cada caso, sendo os referidos programas revistos periodicamente”, explica a comissão. Os apoios financeiros a estas testemunhas, quando mudam de residência e precisam de apoio a nível laboral, têm limite, como esclarece a CPES: “Poderão ser atribuídos subsídios de subsistência ou para a criação de condições para angariação de meios de subsistência, por um período limitado.”
No caso das cirurgias plásticas, a CPES frisa que só é um recurso quando o processo em que a testemunha está envolvida o exige, não sendo uma prática muito comum. “A alteração do aspeto fisionómico ou da aparência do beneficiário constitui uma das medidas de proteção consagradas na lei, sendo aplicável apenas quando razões estritas de segurança o justifiquem, dependendo da aceitação do beneficiário do programa especial de segurança.”
Até ao momento, todas as pessoas que estiveram ou ainda estão sob proteção não sofreram qualquer retaliação. A Polícia Judiciária dispõe na sua sede em Lisboa de dois apartamentos em que pode albergar testemunhas temporariamente enquanto o processo na CPES não é posto em prática.
O programa de proteção pode estender-se a familiares e a sua duração é variável. Periodicamente, é revisto. Quando se justifica, as testemunhas recebem um subsídio de subsistência.