Há uma mentira a circular sobre António Costa
Logo após a divulgação da imagem que mostrava a socialista Isabel Moreira a pintar as unhas no Parlamento, várias páginas de fake news anunciaram: o primeiro-ministro ia processar o fotógrafo...
Esta semana, logo após a divulgação de uma foto da Reuters que mostrava a deputada socialista Isabel Moreira a pintar as unhas no Parlamento, várias páginas anunciaram uma mentira. Que alastrou. Um dos administradores do site está a convocar, paralelamente, uma manifestação à porta de São Bento.
“António Costa diz que vai processar o autor da foto de Isabel Moreira”, é este o título. Foi publicado logo na segunda-feira, pouco depois de a foto, propriamente dita, ter sido divulgada pela Reuters, com grande destaque nos media portugueses. O fotógrafo da agência, Rafael Marchante, fez uma reportagem durante o debate parlamentar do Orçamento do Estado. Uma das imagens mostrava a deputada socialista Isabel Moreira a pintar as unhas.
Enquanto nos media a ação da deputada, que se via na foto, era debatida, nas redes sociais começaram a circular boatos. “António Costa diz que vai processar o autor da foto de Isabel Moreira!! Ele não gostou da brincadeira. Era o que mais faltava, não era?”
Rapidamente, a desinformação passou a ter mais partilhas do que a fotografia original. Só na página que a criou – que se chama Gazeta Política – há 113 comentários, quase todos de leitores indignados. Esses leitores aparecem, de nome e cara descoberta, a escrever as suas indignações. Chamam-se José Babo, Patrícia Amaral, Joaquim Vitorino, Maria Filomena Rodrigues. Comentaram ligados ao Facebook, deixando o link para as suas próprias páginas, talvez ignorando que o faziam numa página que não tem qualquer registo oficial. E que o que dizem pode configurar um crime.
Apesar do nome – chamava-se Gazeta o primeiro jornal português, do século XVII – esta página, que divulgou a mentira sobre o suposto processo judicial contra o fotógrafo da Reuters, não é um jornal, uma qualquer outra forma de meio de comunicação social. Não está registado na entidade reguladora do setor (ERC). E, como é habitual nestes casos, não tem qualquer face visível que apareça como responsável pelo que ali é dito.
Numa primeira pesquisa, apuramos que o endereço da página (IP 185.32.188.100) pertence a um provedor de serviços de alojamento online em Odivelas, registado em nome de uma empresa que acolhe domínios na internet, a Sampling Line, Lda – PTServidor.
Esta empresa tem várias faixas de endereços online russas. Mas a Gazeta Política não é uma delas.
Na mesma morada da Gazeta Política funcionam sites com objetivos semelhantes – difundir informação falsa, mentiras. Além disso, esses sites copiam na íntegra conteúdos de jornais reais (as colunas de João Miguel Tavares, no Público, de Helena Matos, no Observa- dor, os comentários de Manuela Moura Guedes, na SIC, aparecem numa coluna de “opinião”). Além deste, que difundiu o falso processo de António Costa, estão alojados no mesmo endereço os sites Portugal Livre (“Putin quer que refugiados regressem à Síria”), ou o ainda vazio antigeringonça.
Na mesma morada funciona, também, uma Folha do Mário. Mário Gonçalves, o dono do site, é um cidadão português, do concelho de Elvas. Numa pesquisa pelo site Gazeta Política, o seu nome aparece como autor de um dos raros textos assinados (sobre um incêndio em Elvas).
Ele é um dos cinco administradores do Gazeta Política. Os outros estão em Lisboa e em Coimbra. Gonçalves garante que não foi ele quem criou o boato sobre o processo de António Costa. Diz-nos, aliás, que chegou a escrever uma história parecida, no seu site – dando conta de uma alegada investigação do Ministério da Administração Inter- na ao fotógrafo da Reuters. “Mas já desmenti essa notícia depois de ter investigado. Eliminei a publicação e tudo. E pedi desculpas.”
Entretanto, essa história, que o próprio autor assume que “não correspondia à verdade”, alcançou “mais de dez mil partilhas”. Gonçalves admite que isso é um problema. Divulgar mentiras na internet pode ser fácil, mas “dá problemas para a pessoa que está na notícia e para quem a criou e divulgou”, concede Mário Gonçalves.
Qual é, então, o objetivo de o fazer? “Alertar as pessoas”, defende Mário Gonçalves, embora garanta que isso se deva fazer “com respeito pela verdade”.
Gonçalves, que assume ser administrador do Gazeta Política, garante que já está afastado do dia-a-dia do site. Não aceitou, apesar de tudo, dar-nos os contactos dos atuais gestores da página.
Além de administrador da Gazeta, e da sua página pessoal, Gonçalves gere dois perfis populares no Facebook. Num deles tem mais de 76 mil seguidores. Aí, no dia 1 de novembro, publicou uma “carta aberta” à deputada Isabel Nogueira. O texto apresenta um conjunto de acusações a deputados e ex-governantes, apenas do PS. Termina acusando Isabel Moreira: “Não passa de uma pequena gota de indecência num copo cheio de muita mais. Um copo cheio de promiscuidade e ajustes diretos. Uma Assembleia da República cheia de uma maioria de falsos inocentes.”
No dia 30 de outubro, outra carta aberta à mesma deputada: “Desculpa, mas hoje vou ter de te escrever esta carta aberta no sentido que peças a tua demissão. É demais, não há mais palavras para definir o que me vai na alma em reou
lação à tua pessoa, não há adjetivos suficientes, acredita.”
No segundo perfil do Facebook, o mesmo Mário Gonçalves revela-se mais. É um ex-funcionário público, do Ministério da Administração Interna, e tem mais de 4800 amigos. Aparece, sorridente, em fotografias com Assunção Cristas e Paulo Portas, mas também com o autarca socialista de Elvas e com o criador dos cafés Delta, Rui Nabeiro. Descreve-se como ex-presidente da secção do CDS em Monforte. Mas, no ano passado, nas vésperas das eleições autárquicas, rompeu com o partido e apoiou o candidato do PS à câmara de Elvas. A reviravolta na política local fez correr muita tinta. O líder do partido em Portalegre, Tiago Abreu, reagiu à saída de Mário Gonçalves dizendo que “o CDS distrital ou mesmo o CDS de Elvas não são, nem nunca serão, uma central de empregos. Quem está, está por convicção”.
As convicções de Mário Gonçalves enchem duas páginas de Facebook, e outros sites. Dos apoios ao CDS e ao PS, à reprodução das propostas de AndréVentura (ex-PSD). Quer combater a “corrupção”, a “podridão”, e outros males semelhantes. Ora pede para que a esquerda e a direita se juntem “para chegar a um consenso”, ora organiza manifestações em São Bento contra António Costa e garante, como o fez em declarações à Visão, que está por tudo:“Se der para o torto, também estamos cá para isso.”
Essa manifestação que Gonçalves organizou foi aquela que simbolizou o auge da polarização política em Portugal, em novembro de 2015. Deputados socialistas, como João Galamba, foram interpelados na rua pelos manifestantes e insultados. Talvez seja isso o “dar para o torto”. Mas Mário Gonçalves quer mais. No Facebook tem convocado, diariamente, uma manifestação para esta segunda-feira, 5. No Gazeta Política, ao lado da mentira sobre o processo de António Costa a um fotógrafo, esse projeto é descrito assim: “Mário Gonçalves organiza a maior manifestação que Portugal já assistiu nos últimos anos…”
O texto do Gazeta Política é ameaçador: “Haverá também organização de vários militares já na reserva e outros ainda no ativo que se querem juntar.”
Mas Mário Gonçalves diz ser “apartidário”. “Já fui político, do CDS, mas agora não estou ligado à esquerda nem à direita.”
O seu discurso, os seus vídeos, e as histórias que publica vão sendo partilhadas nas redes sociais. Como é natural, ninguém gosta de corrupção. Isso é o que une as dezenas de milhares de pessoas (ou perfis de pessoas) que partilham os boatos da Gazeta Política e seguem as palavras de Mário Gonçalves, um musicoterapeuta de Monforte. E é nesse universo, que a maioria dos portugueses não conhece, que nasceu uma mentira – o primeiro-ministro quereria perseguir um fotógrafo, para o punir por uma foto incómoda. As mentiras, já se sabe, alastram. E tornam-se verdades, para muitos.
Rapidamente, a desinformação passou a ter mais partilhas do que a fotografia original. Só na página que a criou – que se chama Gazeta Política – há 113 comentários, quase todos de leitores indignados.