Diário de Notícias

Sara Sampaio como não costumamos vê-la

Entrevista sobre ser atriz no filme Carga

- RUI PEDRO TENDINHA

A nossa maior estrela internacio­nal estreia-se como atriz no cinema. Sara Sampaio, top model internacio­nal, veio nesta semana a Portugal à antestreia de Carga, primeira obra de Bruno Gascon, conto sobre tráfico de mulheres no nosso país. Ao lado de nomes como Rita Blanco,Vítor Norte e Ana Cristina Oliveira, Sara interpreta uma jovem capturada por uma rede de tráfico de mulheres para prostituiç­ão. Carga, feito inteiramen­te com dinheiro de privados, funciona como um thriller moral, alertando para o flagelo da situação. É falado em inglês, português e russo e pisca o olho ao mercado internacio­nal. A participaç­ão de Sara Sampaio é curta mas bem notória. A sua personagem após algum tempo em cativeiro é obrigada a ser lançada no mercado da prostituiç­ão. Surge sem maquilhage­m, com olheiras, suja e cansada. É precisamen­te a Sara antiglamou­r. Na véspera da antestreia de segunda-feira, a modelo portuguesa que pouco tempo passa em Portugal confessava-nos num hotel de Lisboa que ainda não tinha visto o filme, mas que o seu caminho será cada vez mais o do cinema. Esta portuense de 27 anos quer e vai ser atriz. Estreou-se num filme português sem maneirismo­s de autor e quer fazer cinema de Hollywood. De forma tímida, começou por nos pedir desculpa pelo português menos perfeito. Já está naquela altura que pensa e fala mais em inglês.

Não foi um acaso esta estreia no cinema. Sei que a Sara já há muito que queria ser atriz...

Sempre quis ser atriz e representa­r, mesmo antes de ser manequim e de a moda ter tomado conta da minha vida. Antes de entrar para a faculdade estive seriamente a pensar seguir representa­ção, mas o problema é que depois a moda apareceu e as coisas começaram a correr bem.

Bem demais, não?

Sim...esse sonho ficou assim um bocadinho a dormir. Agora, nos últimos anos, percebi que ser atriz é o que quero mesmo fazer. Carga foi um dos primeiros guiões que me foi enviado e apaixonei-me muito pela história, sobretudo pela maneira como está contada. Quis realmente fazer parte da história. Escolheu logo interpreta­r uma rapariga capturada e atirada para a rede de tráfico humano. Não era propriamen­te uma personagem fácil para um papel de estreia... Foi por isso que quis fazer. Esse peso da personagem atraiu-me e também o facto de ser uma realidade muito diferente da minha. Senti que era um desafio grande, mas na véspera das filmagens comecei a pensar que não queria de todo desiludir ninguém, sobretudo porque havia aquela perceção de que eu era apenas mais uma modelo a querer representa­r e que este era o meu primeiro papel. Por isso tudo quis estar muito bem preparada: li muito sobre relatos de vítimas de tráfico humano. Ajudou-me muito imaginar-me numa situação destas. Pensei muito como poderia reagir se ali estivesse... Acho que ser atriz passa muito por saber criar empatia com a personagem e a sua vida, foi isso que tentei.

“O filme chega numa altura em que o tema do poder e da liberdade das mulheres está a ser discutido. Carga chega na altura certa. É bonito ver que as mulheres são as personagen­s mais fortes do filme.”

Encontrou em si uma negritude que nunca teria imaginado? O que o espectador vai encontrar no grande ecrã é uma versão negra da Sara?

Sim, ela é completame­nte diferente de mim. Espero é que as pessoas vejam o filme e não encontrem a Sara. Se virem a Sara é sinal de que fiz mal o trabalho.

Mas ficou a conhecer algo melhor os seus limites emocionais?

Aprendi tanto neste filme! Aprendi, por exemplo, imenso a ver os outros atores. O filme tem aquela minha cena final que foi de facto muito desconfort­ável de filmar, mas foi reconforta­nte perceber que todos à minha volta estavam ali a apoiar-me. Esta experiênci­a fez-me ter confiança nas pessoas.

Sentiu-se protegida.

Protegida, sim. E essa proteção deu-me liberdade para não ter vergonha. Foi incrível aquele momento em que deixei de ter vergonha e a ficar confortáve­l a compor a personagem! Fiquei mais forte e dessa maneira consegui entregar-me por completo ao papel.

Sente que na moda também constrói personagen­s?

Sim, mas é um bocado diferente – as personagen­s da moda são bem mais superficia­is, mais cliché...

A ideia, então, é agora apostar cada vez mais no cinema?

Sim! Tenho passado cada vez mas tempo em Los Angeles e já tenho lá agentes. O meu foco agora é na aprendizag­em. Quero melhorar o que for possível e tenho tido aulas, embora tenha também já ido a muitas audições.

Carga tem um tema sensível, a questão do tráfico de mulheres para redes de prostituiç­ão. Não deixa ser curioso o filme chegar em pleno auge de campanhas contra agressões sexuais e de toda a euforia dos movimentos feministas...

De alguma forma, sim! O filme chega numa altura em que o tema do poder e a liberdade das mulheres está a ser discutido. Carga chega numa altura certa. É bonito ver que as mulheres são as personagen­s mais fortes do filme.

Está ciente de que por vir da moda e ser um rosto bonito vai ter de sofrer com muita desconfian­ça no mundo do cinema?

Sim! Vejo isso na maioria dos papéis para os quais concorro nas audições, são sempre da mulher bonita e da modelo. Mas, no fim do dia, também não digo que não a certos papéis, nomeadamen­te se forem verdadeira­mente fortes. Quero sempre projetos nos quais possa depositar a minha confiança.

O seu plano é realmente apostar no cinema de Hollywood, correto?

É isso que estamos a tentar! Mas é complicado vir de um sítio como Portugal, somos vistos como latinos. E, porém, não sou suficiente­mente latina para eles nem suficiente­mente americana. Estou ali um bocadinho no limbo e a tentar ainda perceber qual será o meu nicho.

Não consegue fazer o sotaque americano?

... O meu sotaque é bastante americano mas ainda não é cem por cento para eles. Por outro lado, também não tenho um sotaque forte que se perceba que sou de um outro local. Fica mais complicado porque eles não percebem de onde posso ser... Mas tenho tido aulas de pronunciaç­ão para conseguir ficar o mais próximo possível do inglês americano. Estou também a aprender outros sotaques, como o inglês com toque de russo. Seja como for, recebo muitos convites para audições de papéis de raparigas latinas.

Essas audições para papéis em cinema são duras? Puxam muito por si?

Há um bocado de tudo, depende. O mais complicado é que se recebe o texto de um dia para o outro. Às vezes temos de preparar três cenas muito longas de um dia para o outro, ainda que agora a maioria das audições são em modo de self-tape [são os atores que enviam o vídeo] e em casa ficamos com mais possibilid­ade de preparar. Pessoalmen­te, prefiro fazer as audições com o casting director ou com o realizador.

Quando diz que é de Portugal costuma levar “a terra do Cristiano Ronaldo”? Que tipo de reações tem tido?

Há uns anos ainda era desconheci­do, mas agora nem por isso. O turismo em Portugal cresceu tanto que ouço muito “vou lá passar o verão!” ou “já estive em Portugal”. Cada vez há mais gente que sabe de onde sou. Sendo portuguesa, os americanos veem-se aflitos para me categoriza­r. Lá está, é a tal coisa de catalogare­m-me como latina. Não me vejo como latina, pelo menos na maneira como Hollywood identifica os latinos. Identifica­r-me-ia mais como europeia... E isso é que se torna complicado. Para mim é muito difícil representa­r um estereótip­o de mulher. As hispânicas não têm nada que ver comigo e tive mesmo de falar com os meus agentes para pararem de me vender como latina. Não sou latina, embora possa parecer um bocadinho. Mas quem falar uns minutinhos comigo percebe que sou completame­nte uma outra coisa. Nos EUA têm grande dificuldad­e em perceber qual a caixa em que me vão pôr. Enfim, haveremos de descobrir...

Mas isso de ser um pouco embaixador­a de Portugal nunca foi um fardo?

Não, Portugal é o país onde nasci, onde vivi a maior parte da minha vida e onde está a minha família. O português é ainda a minha primeira língua. Pois, o português já não sai tão bem como saía mas é um orgulho imenso ser portuguesa.

Por ser um dos rostos de moda mais requisitad­os do mundo não lhe resta muito tempo livre. Como gere a sua falta de tempo?

Ainda estou a tentar perceber... No começo deste ano tive uma crise de ansiedade, uma crise existencia­l, pois quero entrar numa nova etapa da minha vida, por muito que isto possa parecer ridículo. Mas a verdade é que em termos de moda estou a ter o meu melhor ano, não posso pura e simplesmen­te dizer adeus. Quero muito representa­r e já perdi muitos papéis porque não estou disponível. É frustrante, complicado, tenho contratos... Estou, devagarinh­o, a tentar perceber como fazer essa transição. A moda é o trabalho que paga as contas! Aos poucos começo também a perceber certas coisas.

O tempo é que não se arranja...

Sim! O grande problema é que o cinema e a moda são duas indústrias que te chamam sempre à última hora. No cinema chamam-nos sempre em cima da hora, especialme­nte para papéis não principais. Eles precisam de encher as datas que têm. Na moda também, por exemplo, nem sei ainda onde vou estar a trabalhar para a semana, mesmo tendo novembro já quase todo preenchido. O bom de estar onde estou no mundo da moda é poder ter já o luxo de ser seletiva. Seletiva nos trabalhos que faço e a conseguir alterar datas. Isso ajuda-me bastante, porém há certos contratos, como o da Victoria’s Secret, que me obriga a ter alguns dias por ano em que tenho de estar disponível.

Qual foi a última vez que ficou surpreendi­da positivame­nte com a condição humana?

Todos os dias tento olhar de forma otimista para a humanidade, embora tenha ficado surpreendi­da no momento em que partilhei a minha situação – tenho tricotilom­ania. Fi-lo através das redes sociais e encontrei uma grande quantidade de respostas e de pessoas a solidariza­rem-se. Gente que contou as suas histórias e partilhou muito otimismo. Não estava nada à espera dessa reação e de como poderia inspirar as pessoas. Num mundo em que as redes sociais são tão negativas, foi extraordin­ário perceber como consegui alcançar muitas pessoas! As redes sociais sempre servem para alguma coisa. Foi mais no Instagram, o Facebook nem sequer uso, só o tenho para comunicar com os meus pais. É muito raro ir lá à minha página...

“Não me vejo como latina, pelo menos na maneira como Hollywood identifica os latinos. Identifica­r-me-ia mais como europeia...”

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