Diário de Notícias

Cabo Verde com guia

- João Céu e Silva

“Esta é a minha ilha”, diz o meu companheir­o de passeio enquanto descemos a pé do cocuruto onde fica o restaurant­e em que os participan­tes na Festa do Livro Morabeza jantaram, pessoas avisadas que achavam que nos íamos perder. Se fosse o caminho ao contrário, não teria aceitado o convite, tal é a montanha-russa para lá chegar, mas para baixo tudo ajuda e lá fomos. O caminho de pedras roladas não faz lembrar nada, no entanto por onde vamos passando há memórias de um habitante do Mindelo em jovem. “Ali atrás ficava a pastelaria Algarve”, que foi inaugurada há muitas décadas, “os donos já não podem estar vivos, de quem será agora?” Cruzamo-nos com um notívago e cumpriment­am-se: “Fomos colegas na escola.” Chegados à marginal, convida-me para continuar o passeio por mais uns minutos: “Gosto de esticar o dia o mais possível.” Passamos em frente ao Centro Cultural do Mindelo e lá vem outra memória: “Era tudo tão diferente... aqui era a alfândega apenas e não havia um único prédio à volta, usavam o espaço para as mercadoria­s que vinham nos navios ou o que embarcava.”

Marginal à frente, está um prédio não muito alto mas comprido: “Esta era uma construção sólida, o tempo não passou pelo edifício.” De quando é, responde que data da década de 1960. Mais uns passos à frente e diz: “Tiraram daqui a antiga estátua que celebrava a passagem do avião do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral a caminho do Brasil e puseram outra”... O assunto fica-lhe na cabeça: “Porque fazem isto?” Uns passos depois: “A estátua antiga representa­va uma asa grande, tinha mais sentido do que esta nova.” Que não passa de uma espécie de padrão em pedra com a marca João Cutileiro.

Voltamos para trás e ficamos em silêncio. Não há mais para conversar sobre aquilo que o meu companheir­o de passeio acabou de relatar enquanto passeávamo­s porque não gosta de fechar a noite cedo. Não andou apenas a lembrar os seus tempos de jovem, afinal dissera logo “esta é a minha ilha”, nem a esticar a noite, nem a mostrar a cidade do Mindelo, onde, se tivéssemos andado mais uns metros, teríamos visto a praia mais central, mesmo que seja artificial. E não é por ser quase impossível acreditar que aquele tom azul-clarinho é falso, apenas porque nos tempos de juventude do meu companheir­o não era feita de areia branca mas de calhaus. Só na manhã seguinte compreendo que o meu companheir­o de passeio tinha querido ser simpático para com um português de visita a Cabo Verde e que lhe andou a apontar as coisas que os seus antepassad­os tinha feito na cidade e que podem passar despercebi­das a quem está de passagem apenas. Aquilo que os dele construíra­m no Mindelo não precisava de ser realçado, estava à vista.

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