Haruki Murakami Recriar o Grande Gatsby a pensar num Nobel pop
Se o prémio da Academia Sueca mantivesse o rumo em que ia até rebentar o escândalo que suspendeu o Nobel da Literatura, talvez o único escritor japonês que é bastante lido em todo o mundo fosse um sério candidato. Ele esforça-se...
Asensação está lá desde o início do romance e é impossível fugir-lhe, a de que Haruki Murakami tem vindo a reconfigurar a sua escrita para se tornar menos pop e mais clássico. Já tinha acontecido principalmente com Kafka à Beira-Mar, mas no seu mais recente romance A Morte do Comendador (pré-publicação na edição online do DN), essa perceção acentua-se. Podia ser fruto da idade, mas é o próprio escritor que assume ao designar este novo romance como uma “homenagem épica a O Grande Gatsby”, ou seja bastante distante do desvario delicodoce do Sputnik, Meu Amor, até do seu primeiro romance, o NorwegianWood.. Sobre este último livro Murakami diz ter sido a sua prova de fogo – aqui inexiste o elemento de fantasia habitual em quase tudo o que escreveu posteriormente e, curiosamente, tem como protagonista um jovem que passa o romance a ler o mesmo O Grande Gatsby que agora é homenageado.
Na bibliografia do autor estão várias traduções de escritores norte-americanos. A lista é premium: J.D. Salinger, Raymond Carver, Truman Capote e John Irving. A acrescentar a este quarteto está – novamente – esse americano que mais impressiona o japonês, F. Scott Fitzgerald, de quem até traduziu O Grande Gatsby em 2006. Não terá sido por acaso que o fez, pois confessou então que “se tivesse de escolher um único livro, ele seria o Gatsby, porque é responsável pelo género de literatura que escrevo”. Por isso mesmo, 12 anos depois Murakami não escapou aos (des)heróis desse importante tratado literário e usou-os como inspiração para o seu mais recente lançamento, A Morte do Comendador.
Nada que não faça lembrar o momento que o autor japonês propagandeia como aquele em que se descobre capaz para a literatura, tão trágico como americanizado, e que está em destaque no seu site oficial – na terceira pessoa! – como verdadeira declaração de amor: “Em 1978, Murakami estava nas arquibancadas do Estádio Jingu a assistir a um jogo de basebol entre os Yakult Swallows e os Hiroshima Carp quando Dave Hilton, um americano, fez um double. De acordo com essa história repetida vezes sem conta, Murakami percebeu de um momento para o outro que seria capaz de escrever um romance.” Diga-se que este final feliz bem ao género murakamiano termina com a seguinte frase (ainda na terceira pessoa): “Ele foi para casa e começou nessa mesma noite a escrever.”
Em A Morte do Comendador, tomar uma decisão que altere a vida do protagonista não é assim tão fácil e só acontece à página 93 deste primeiro de dois volumes que somam mil páginas sobre um pintor retratista que recebe uma encomenda inesperada e impensável não fazer de tão bem paga. Antes de chegar a esse primeiro momento decisivo do romance, Murakami não resiste a repetir-se a nível de uma soap-opera plena de voyeurismo sobre a vida sexual do seu personagem. Esta característica nunca deixa de estar presente na maioria dos seus livros, com fixações repetidas de maridos abandonados por mulheres, de mulheres frígidas ou de envolvimentos lésbicos, a maior parte sem razão literária de ser.
Neste Comendador esse prato é servido ainda a narrativa vai na página 17 – através das duas amantes do protagonista – e à 27 – com a própria mulher –, não deixando de colocar entre as duas situações a trama que vai dar origem à história. Murakami já fizera uma primeira revelação no prólogo e entre os dois episódios sexuais irá apresentar o famoso pintor Tomohiko Amada, além de definir o seu protagonista como um ser desesperado perante o fim de uma relação. Até aqui a sombra de O Grande Gatsby é difícil de sentir, mas o “épico” tem tantas páginas que não faltará espaço para a prometida homenagem.
Sem fantasia não há Murakami
Haruki Murakami [quase] não dá entrevistas, prefere deixar no site uma fotografia da sua secretária com vários objetos que, através de um clique, explicam a razão de estarem ali. É o caso de uma chávena com a bandeira suíça, um pedaço de mármore escandinavo, um pé em madeira do Laos, um boneco do jogador de basebol Yasuhiro “Ryan” Ogawa ou a sua coleção de dez mil discos. No entanto, quando publicou Kafka À Beira-Mar abriu a boca confessou-se: “Para mim, escrever um romance é como ter um sonho acordado.” É isso que faz em A Morte do Comendador quando decide atingir a velocidade de cruzeiro na narrativa, a tal que tem um sabor a candidato que se perfila ao Nobel. Não terá sido por acaso que por ausência de um pronunciamento neste ano da Academia para o Prémio Nobel da Literatura, Murakami recusou integrar a lista de candidatos de um Nobel alternativo com a justificação de que precisava de paz.
Em busca do seu Gatsby, o escritor cria um personagem à imagem do de Fitzgerald. Chama-lhe Menshiki e só lhe completa o nome, Wataru, páginas à frente. É o personagem opaco que se espera, afinal Murakami nunca entrega ao leitor uma figura principal sem a rodear de mistério. Menshiki só tem de percetível uma cabeleira branca, um olhar indecifrável e o facto de ser impossível de encontrar informações sobre si na internet.
Ainda se vai na primeira centena de páginas e sente-se que estão a ser colocados todos os ingredientes para o romance nunca mais ser considerado como pop a exemplo da maioria dos seus livros, há até cenários que transportam os leitores para obras de maturidade dos autores americanos que Murakami traduziu em tempos, bem como certas tentativas de bordar frases como os grandes autores russos do século XIX. É o caso da descoberta da explicação para um quadro, em que Murakami faz do seu simplório pintor em crise de inspiração uma espécie de aristocrata da cultura que encontra na ópera Don Giovanni o que só mestres como Mozart ou Rembrandt seriam capazes.