Há demasiados encapuzados na vida portuguesa
Aentrevista já acabou e os microfones estão desligados quando Manuel Alegre faz um salto histórico, da questão que o move presentemente – o IVA das touradas – até ao seu passado. O salto que encontra no seu passado a explicação para a sua indignação recente. Regressa ao momento em que, depois do 25 de Abril, já em Portugal, vindo do exílio, ele, que era uma das referências à esquerda, resolve juntar-se a Mário Soares no PS e lutar contra os radicalismos – de esquerda e militares. Os seus olhos azuis estão sérios. E a voz cava diz: “É isso. Isto é tudo demasiado perigoso.”
O IVA das touradas não é uma questão demasiado pequena para invocar tão grande luta? Seria, não fossem estes tempos estranhos em que vivemos. Portugal, sendo um país pequeno, de elites ainda mais endogâmicas, e comunicação social anémica, tem tendência a sobrevalorizar alguns temas e polémicas que se revelam espúrias. Damos demasiada atenção ao futebol, por exemplo. Não é o caso das touradas, que vão, aliás, no mesmo sentido da polémica à volta de chamar Descobrimentos aos Descobri- mentos. Num caso, ao arrepio da História, julgando com valores de hoje o que aconteceu ontem. No outro, ao arrepio da tradição, ignorando o que faz de um país um país, e alienando uma boa parte dele em prol dos valores da outra parte.
Ao ignorar e, sobretudo, desprezar, uma boa parte dos que não pensam como nós, começamos por dividir, acabamos a aliená-los. Foi o que aconteceu na América que elegeu Trump – não constituída por trogloditas, mas antes por gente com problemas reais e valores tradicionais que se sentiu deixada de lado por uma certa esquerda a que estava habituada a recorrer e pela direita que não perfilhava os seus valores. Apareceu Trump, um ser vazio e sinusoidal, disposto a oscilar o discurso à medida do que essa gente queria ouvir. Os resultados, do lado de lá do Atlântico são os que já conhecemos, e outros a que ainda assistiremos.
Quando a micro-história se junta à História com H grande, aos olhos de um homem como Manuel Alegre, nós, os que vivemos menos, e menos intensamente, nós os que temos menos experiência, devíamos parar para ouvir. Quando Manuel Alegre se recoloca no espaço público, para tomar lugar nesta frente de batalha das touradas, é preciso observá-lo. Hoje, como nesses momentos iniciais da revolução, ele é uma voz contra os radicalismos.
Na altura, lutou contra a perspetiva de um panorama dramático, entre um regime militar musculado e uma esquerda desabrida. Aos que estão a encolher os ombros a achar toda esta comparação demasiado ridícula, ele lembra que aquilo contra o que lutou foi a violência latente dos que, de ambos os lados, achavam que a razão só tinha um sentido, e era o deles.
Otoque final para a conclusão de Alegre foi a reportagem da TVI que redescobriu um grupo violento de defesa dos direitos dos animais – que, note-se, não tem vergonha de se chamar IRA – e se deixou fotografar de cara tapada para as redes sociais. Já há, talvez, demasiados encapuzados na vida recente portuguesa para não nos preocuparmos.
Primeiro foram os membros da claque Juve Leo que assim entraram na Academia de Alcochete para bater nos jogadores do Sporting que estavam contra a sua direção. Agora são estes, em defesa cega dos animais. Quando alguém, em paz e democracia, esconde a cara numa luta é porque, lá no fundo, sabe que essa luta não será assim tão justa. E isso é tão perigoso como parece. E como dizia Alegre.
Quando alguém, em paz e democracia, decide tapar a sua cara para lutar é porque sabe que essa luta não será assim tão justa.