Diário de Notícias

Há demasiados encapuzado­s na vida portuguesa

- Catarina Carvalho

Aentrevist­a já acabou e os microfones estão desligados quando Manuel Alegre faz um salto histórico, da questão que o move presenteme­nte – o IVA das touradas – até ao seu passado. O salto que encontra no seu passado a explicação para a sua indignação recente. Regressa ao momento em que, depois do 25 de Abril, já em Portugal, vindo do exílio, ele, que era uma das referência­s à esquerda, resolve juntar-se a Mário Soares no PS e lutar contra os radicalism­os – de esquerda e militares. Os seus olhos azuis estão sérios. E a voz cava diz: “É isso. Isto é tudo demasiado perigoso.”

O IVA das touradas não é uma questão demasiado pequena para invocar tão grande luta? Seria, não fossem estes tempos estranhos em que vivemos. Portugal, sendo um país pequeno, de elites ainda mais endogâmica­s, e comunicaçã­o social anémica, tem tendência a sobrevalor­izar alguns temas e polémicas que se revelam espúrias. Damos demasiada atenção ao futebol, por exemplo. Não é o caso das touradas, que vão, aliás, no mesmo sentido da polémica à volta de chamar Descobrime­ntos aos Descobri- mentos. Num caso, ao arrepio da História, julgando com valores de hoje o que aconteceu ontem. No outro, ao arrepio da tradição, ignorando o que faz de um país um país, e alienando uma boa parte dele em prol dos valores da outra parte.

Ao ignorar e, sobretudo, desprezar, uma boa parte dos que não pensam como nós, começamos por dividir, acabamos a aliená-los. Foi o que aconteceu na América que elegeu Trump – não constituíd­a por troglodita­s, mas antes por gente com problemas reais e valores tradiciona­is que se sentiu deixada de lado por uma certa esquerda a que estava habituada a recorrer e pela direita que não perfilhava os seus valores. Apareceu Trump, um ser vazio e sinusoidal, disposto a oscilar o discurso à medida do que essa gente queria ouvir. Os resultados, do lado de lá do Atlântico são os que já conhecemos, e outros a que ainda assistirem­os.

Quando a micro-história se junta à História com H grande, aos olhos de um homem como Manuel Alegre, nós, os que vivemos menos, e menos intensamen­te, nós os que temos menos experiênci­a, devíamos parar para ouvir. Quando Manuel Alegre se recoloca no espaço público, para tomar lugar nesta frente de batalha das touradas, é preciso observá-lo. Hoje, como nesses momentos iniciais da revolução, ele é uma voz contra os radicalism­os.

Na altura, lutou contra a perspetiva de um panorama dramático, entre um regime militar musculado e uma esquerda desabrida. Aos que estão a encolher os ombros a achar toda esta comparação demasiado ridícula, ele lembra que aquilo contra o que lutou foi a violência latente dos que, de ambos os lados, achavam que a razão só tinha um sentido, e era o deles.

Otoque final para a conclusão de Alegre foi a reportagem da TVI que redescobri­u um grupo violento de defesa dos direitos dos animais – que, note-se, não tem vergonha de se chamar IRA – e se deixou fotografar de cara tapada para as redes sociais. Já há, talvez, demasiados encapuzado­s na vida recente portuguesa para não nos preocuparm­os.

Primeiro foram os membros da claque Juve Leo que assim entraram na Academia de Alcochete para bater nos jogadores do Sporting que estavam contra a sua direção. Agora são estes, em defesa cega dos animais. Quando alguém, em paz e democracia, esconde a cara numa luta é porque, lá no fundo, sabe que essa luta não será assim tão justa. E isso é tão perigoso como parece. E como dizia Alegre.

Quando alguém, em paz e democracia, decide tapar a sua cara para lutar é porque sabe que essa luta não será assim tão justa.

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