A crise de 2008 deixou o socialismo moderado sem programa
Comecei na semana passada uma reflexão sobre os desafios da esquerda moderada, depois de ter elaborado sobre simétrico desafio à direita. Gostaria hoje de traçar o que penso ser o dilema atual dessa esquerda. Os êxitos da economia de mercado e das liberdades de circulação, que formam núcleo essencial da construção europeia e foram responsáveis pelo desenvolvimento ímpar do mundo livre, atraíram a esquerda socialista. Não foi com a terceira via -– começou antes, como é de antes o socialismo na gaveta de Soares – mas foi a terceira via que assumiu essa conversão ao essencial dos principiais liberais: Clinton não renegou a visão pró-mercado de Reagan, Blair não reverteu o que Thatcher reformou, Schröder flexibilizou o mercado laboral, Guterres privatizou mais do que Cavaco.
Essa conversão não foi só calculista. Ela traduziu a evolução natural de uma esquerda confrontada com os êxitos da economia de mercado. Para quê reverter o que resulta? Foi uma conversão mais programática do que se diz. E não foi ineficaz: em 2000, os partidos socialistas – embrulhados como “New Labour”, “Neue Mitte” ou “Nova Maioria”, replicando os “New Democrats” – governavam em dez dos 15 países da União e beneficiavam, liderando, dos êxitos do sistema que antes renegavam.
Não se distinguindo economicamente da direita, já que as variações discursivas não escondiam o essencial da conversão, os socialistas procuraram linhas de demarcação. Daí o reforço das políticas identitárias, primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa. Não é que essas políticas não tenham raízes programáticas, mas elas cumpriram um estratégico papel de demarcação. Clinton, Blair, Sócrates ou Zapatero demarcaram-se assim. Ao mesmo tempo, a queda do Muro do Berlim, viva na memória coletiva, assegurava a demarcação face à outra esquerda, associada a sistemas fracassados.
A crise de 2008, num mundo global e veloz, ameaçado por terrorismo e a braços com fenómenos migratórios, deixou esta esquerda sem programa. E sem programa não há vitórias: os socialistas governam hoje em menos de metade dos países da União.
Ao contrário da direita, que acredita há muito na economia de mercado, a esquerda começou a perguntar-se se tinha feito bem em converter-se, sem ao mesmo tempo afirmar algo de sólido para contrapor. As hesitações de Hollande são disso exemplo. A somar, a esquerda percebeu a insuficiência do discurso identitário à luz das prioridades pós-2008 e do sentimento dominante de medo e frustração.
Surgiram assim fenómenos de esquerda mais radical (dentro, como Corbyn, ou fora, como Iglésias, desses partidos), que aproveitaram o espaço programático que uma titubeante esquerda em crise identitária deixou a descoberto.
Com respostas firmes, fáceis, cheios de certezas, com o espectro comunista já no passado (o que explica a adesão juvenil), ofereceram ao menos uma resposta firme, sem hesitações: se a economia de mercado entrou em crise, há que nacionalizar; se as fronteiras deixam entrar concorrência, há que combater a globalização. Pelo meio, acusações de colaboracionismo à esquerda moderada, impondo o binarismo de “se não estás connosco és de direita”, garantindo que tudo era fácil de resolver.
O dilema atual dos partidos socialistas, que Costa pressentiu quando apostou nesta solução governativa, é, pois, este: existe espaço para uma esquerda defensora da economia de mercado que seja percebida como alternativa à direita, ou está a esquerda condenada a radicalizar-se numa espécie de regresso à pureza das origens para se demarcar? Consegue essa esquerda travar o crescimento do radicalismo estatista ou tem de estatizar-se para conseguir vencer? Deve esta esquerda aceitar a polarização que os radicais impõem? Procurarei responder na próxima semana.