Diário de Notícias

Mistério

O que faz um navio parado no Tejo há mais de um ano?

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Esperar por coisa nenhuma é capaz de dar cabo de um homem”, diz Paul Knudsen, que não está a falar só de um homem, mas de 16. Ele conhece-os bem, é o líder da Knudsen Suppliers, a única equipa que os visita – uma vez a cada dois meses, para levar abastecime­ntos. E eles são a tripulação do Rio Arauca, um petroleiro arrestado no Tejo há um ano e quatro meses. É um navio invisível à vista de toda a gente. Os cinco mil passageiro­s que diariament­e viajam de ferry entre o Terreiro do Paço e o Montijo passam-lhe rente. As selfies que os turistas tiram nas Portas do Sol, um dos mais emblemátic­os miradouros da cidade, têm vista direta para ele. O Rio Arauca está ancorado ao largo do Terreiro do Trigo, em águas não muito distantes da margem. Num triângulo em que uma ponta fosse a varanda do Lux e a outra o Cais das Colunas, a embarcação estaria no vértice.

Deu entrada no porto de Lisboa às 09.43 do dia 24 de julho de 2017. Trazia os tanques de petróleo vazios, iria em teoria permanecer uns dias em doca seca à espera de carga. Mas nunca chegou a atracar na margem. O Tribunal Marítimo de Lisboa decretou-lhe ordem de arresto – uma penhora por dívidas, em linguagem corrente E, coisa rara, assim permanece há mais de um ano, sem que ninguém aposte numa data de saída do mar da Palha.

A bordo do Rio Arauca vive hoje uma tripulação mínima de segurança, homens que têm de ficar permanente­mente a bordo e durante meses não podem pôr os pés em terra. Se o cabo de âncora partir, por exemplo, são eles que impedem que o navio embata contra um pilar da ponte. Os oficiais são rendidos a cada quatro meses, mas há tripulante­s rasos que ali estão há mais de um ano.

“Quando chegámos éramos 26, agora ficaram lá 16”, diz Thant Sin, um dos quatro cidadãos da Birmânia, ou Myanmar, que desembarca­ram do Rio Arauca na passada sexta feira. “É o número mínimo.” Falar com estes homens, note-se, é a única maneira de perceber o que se passa a bordo. As autoridade­s portuárias e o armador não permitem que ninguém suba ao convés do petroleiro.

Sin, no entanto, é uma boa fonte: tem 29 anos e passou os dois últimos neste navio – tirando três meses de férias, entre outubro e dezembro de 2017. É marinheiro de convés, estava no Rio Arauca quando ele foi arrestado. “Viemos da Venezuela, estivemos em Setúbal uns dias e quando entrámos em Lisboa não pudemos atracar. Saí da embarcação em outubro mas assinei contrato para uma nova comissão de nove meses. Nunca pensei que os passasse todos no meio de um rio.”

Os nove meses, afinal, não foram só nove meses. “Entrei no dia 6 de dezembro de 2017 e acabei por passar aqui onze meses e dez dias a ver Lisboa ao longe, já não aguentava mais”, suspira. Mostra fotografia­s desse inverno, ele no convés com um cabelo curto que entretanto cresceu. Desde terça-feira que tinha a mala preparada para sair de vez, era essa a data que o comandante lhe prometera para a rendição.

“E depois a saída foi adiada para sexta, o que foi verdadeira­mente duro, mais duro se calhar do que os meses todos que aqui passei.” Há mais gente a queixar-se dessa dureza? “Não está lá ninguém da tripulação original que chegou a Lisboa, mas há homens que já lá estavam quando cheguei em dezembro e ficaram.” Também são do Myanmar, como ele.

Ao DN, o Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras deu conta de 46 desembarqu­es e 40 embarques no Rio Arauca ao longo de um ano e quatro meses. Mas não especifico­u se a rotativida­de se aplica a todos os cargos. Sin encolhe os ombros, admite que há uma parte da tripulação que é revezada constantem­ente, sim. Mas há outra que fica presa a bordo mais tempo do que o contratado.

Uma semana antes da saída dos quatro cidadãos do Myanmar, Knudsen, o responsáve­l pelos abastecime­ntos à tripulação do Rio Arauca, punha as coisas em perspetiva. “Está certo que quem viaja na Marinha Mercante está habituado a passar muitos dias num navio”, dizia. “Mas estes homens não têm nada para fazer, não têm nenhum objetivo para cumprir, não podemos sequer levar-lhes bebida.” Estão à espera e a espera nunca mais termina.

A primeira coisa que Sin fez na tarde de sexta-feira, quando pôs os pés em terra, foi correr para um supermerca­do e comprar uma água-de-colónia. É como se aquele perfume lhe restaurass­e uma certa humanidade. “No mundo dos barcos costumamos dizer que há três tipos de homens: os mortos, os vivos e os marinheiro­s, que não são uma coisa nem outra.” Sábado de manhã embarcou finalmente para Rangoon. “E agora pronto, vou para casa a cheirar a gente.” Um problema no meio do Tejo O Rio Arauca é um petroleiro relativame­nte recente. Foi construído em 2011 nos estaleiros da Samsung, na Coreia do Sul, e batizado de Melodia pelo armador grego que operou o navio durante os dois pri-

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