Diário de Notícias

Gisela de Natal

Tem 35 anos e uma energia contagiant­e. Nesta semana, deixa os fados de lado e apresenta um concerto só com músicas de Natal do cancioneir­o americano.

- MARIA JOÃO CAETANO

É conhecida pela energia contagiant­e e por ser uma grande fadista. Nesta semana, porém, os concertos de Gisela João vão ser só com músicas natalícias.

Ontem à noite esteve em Almada a cantar os seus fados e outras canções tiradas de Nua, o disco que lançou há já dois anos. Na próxima quinta-feira, estará no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a cantar canções de Natal do cancioneir­o americano. Nos últimos meses, tem sido assim a vida de Gisela João: ora em português ora em inglês; ora com guitarrada­s ora ao som da orquestra; ora dorida com “podia ter sido amor/mas foi apenas traição” ora alegre a anunciar que “Santa Claus is coming to town”. “Isto é um bocadinho loucura”, admite a fadista. Tem no telemóvel as músicas de Natal, só a parte instrument­al e já com os arranjos certos, para poder ensaiar a toda a hora. No banho, enquanto faz um bolo, quando se senta no sofá a descansar, quaisquer cinco minutinhos servem. “Ando com isto nos ouvidos para ir trabalhand­o”, conta. E às vezes acontecem-lhe situações divertidas como quando estava no avião a cantar tão entusiasma­da e tão no seu mundo que quando acabou a música aplaudiram-na como se fosse um concerto.

Se há coisa que Gisela João não sabe fazer é estar parada. Fez 35 anos há pouco e tem dois discos no currículo mas uma carreira que vai muito além desses registos. Por exemplo, a peça de teatro Jângal, que fez com o Teatro Praga neste ano e que foi uma experiênci­a “espetacula­r”. E agora esta série de concertos a que chamou Uma Noite de Natal. O convite partiu de Luísa Taveira, diretora artística do CCB. Foi mais ou menos assim: podes fazer o que tu quiseres, a única condição é que seja a partir do songbook americano. Os olhos de Gisela João brilharam ao ouvir estas palavras. “Eu fiquei histérica”, conta. “Porque, para além do fado, eu cresci a ouvir a Ella Fitgerald, a Billie Holiday, o Nat King Cole, todas essas figuras. A minha mãe comprava aquelas caixas de discos do Círculo de Leitores e os standards americanos sempre me apaixonara­m muito.”

Saiu da reunião já cheia de ideias. “Eu começo logo a fervilhar. A ter imensas ideias. Mas depois pensei que, como os concertos seriam na época do natal, se calhar seria giro cantar algumas christmas carols. É uma tradição que os americanos têm, junta-se a família a cantar no dia de Natal, cantam todos juntos, há uma série de canções que toda a gente conhece. Então decidi escolher só músicas específica­s de Natal. Lá pelo meio pus uma outra que não é de Natal, mas que está dentro do espírito.”

“Acho que nasci para cuidar dos outros” Como é óbvio, Gisela gosta muito do Natal. “De vez em quando ouço pessoas a dizerem que não gostam do Natal, que não se reveem nisto do consumismo e não sei quê. Eu sou muito do Natal. Também me chateia esse lado do consumismo mas acho que é muito básico ver o Natal só assim”, contrapõe. “Para mim o Natal é muito mais do que isso. É mais do que as prendas, do que as músicas, do que as comidas (e olhem que eu dou muita importânci­a às comidas). É o espírito. Eu todos os dias da minha vida tento viver com o espírito que devia ser o do Natal, que é cuidar dos outros, não perder a oportunida­de de pôr um sorriso na cara de alguém. Há muitas formas de dar presentes. Dizer a alguém que se gosta dela, ter uma palavra simpática com alguém, estar com os nossos amigos. Isso também são presentes.”

Todas as conversas com Gisela João hão de, em algum momento, passar pela cozinha. Ela gosta de cozinhar, de se perder entre temperos e sabores antigos

“Tento viver todos os dias da minha vida com o espírito que devia ser o do Natal, que é cuidar dos outros e não perder oportunida­de de pôr sorriso na cara de alguém.”

a que junta sempre um pozinho de imaginação. “Quando estou a cozinhar esqueço-me do resto”, diz. Mas, tão ou mais importante do que o ato em si, é o que se segue, depois, à mesa: “Dar de comer é um ato de cuidado. Começa por ser para cuidar do nosso estômago mas depois é também cuidar dos outros. Adoro cozinhar e pôr as pessoas a comer. Cresci assim, com a minha avó a cozinhar, com tempo. Quando dispensas tempo é porque algo é importante e estás a dar algo de ti aos outros. É tão bom. Eu acho que nasci para cuidar dos outros.” É comum vê-la aparecer com uma caixa de bolos nos ensaios, para os músicos, para os amigos, para os que estão à sua volta. Até mesmo nos ensaios com a orquestra? “Sim, são muitos, é difícil, mas levo-lhes uns bolinhos”, ri-se.

Nos concertos de Natal que aí vêm, Gisela João vai estar no palco com 50 músicos. Desta vez, não tem os seus músicos habituais, aqueles que a acompanham quando toca o seu repertório, mas tem um trio de jazz (Luís Figueiredo no piano, Bernardo Moreira no contrabaix­o e Alexandre Frazão na bateria) e tem a Orquestra Filarmonia das Beiras, conduzida pelo maestro António Vassalo Lourenço.

A ideia, conta Gisela João, é evocar as big bands que tocavam com os cantores de jazz nos anos 40. “Quando o desafio me foi lançado eu imaginei logo o cenário de Nat King Cole com a orquestra atrás. E eu sempre pensei que eram músicos de jazz, só mais tarde percebi que não, que as orquestras misturavam-se e formavam as big bands. Aqui também vai ser tudo misturado”, conta. A cantora já tinha trabalhado com a Orquestra Filarmonia das Beiras, no ano passado, mas esses concertos foram baseados no seu próprio repertório. “O que eu sinto com o António Vassalo e com esta orquestra é que eles são superabert­os e não acham nada que o que estão a fazer comigo seja um trabalho menor. O empenho é enorme e tocam com um sorriso na cara”, diz.

A experiênci­a correu tão bem que não hesitou em repetir a parceria. “A orquestra é um instrument­o avassalado­r. Eu às vezes estou no ensaio e há momentos, sobretudo nos solos dos instrument­os, em que me emociono, fico deliciada a ouvi-los e a vê-los. É para lá de bonito. Eu gostava muito que as pessoas fossem mais a concertos de orquestra.” Tem pena, diz, pelos músicos que mereciam ter salas cheias a assistir às suas atuações, mas também pela pessoas, que recusam muitas vezes ir ver concertos de música erudita e não sabem a beleza que estão a perder. Talvez este concerto desperte a curiosidad­e de alguns espectador­es – ela ficaria muito feliz com isso.

Com este trio de jazz é a primeira vez que canta mas, afinal, descobriu que não é assim tão diferente cantar com uma guitarra portuguesa ou com um contrabaix­o. “Eu sempre vi o fado e os standards americanos como a mesma coisa. Os standards são interpreta­dos por muitas pessoas diferentes, como os fados, que são os mesmos mas vão mudando, vivem de quem canta e de quem toca”, explica. “Por isso, vai dar para fazer coisas divertidas.”

“Sei que às vezes sou muito intensa” Escolher as canções para o concerto não foi tarefa fácil. “Tenho muita dificuldad­e em escolher coisas, tenho o coração muito grande”, ri-se. “Eu vou ouvindo músicas e vou pondo para o saco e quando dou por mim já tenho 30 ou 40 canções. Depois é o trabalho de tirar.” Para além das canções mesmo de Natal, das mais tradiciona­is como Silent Night (que completou 200 anos) às mais pop como Little Saint Nick (dos Beach Boys), Gisela decidiu “pintar” o alinhament­o com alguns standards que encarnam o espírito da época e de que ela gosta muito. “Não são propriamen­te de Natal mas têm o espírito – do amor, da solidaried­ade, de empatia.” E para dar um exemplo canta um bocadinho de The Nearness of You (1938, música de Hoagy Carmichael e letras de Ned Washington): “É tão linda, estás a dizer a alguém que é uma felicidade tê-la por perto, isso é o Natal.” E é por causa destas pequenas coisas que se sente um bocadinho mal por ir cantar em inglês: “Há pessoas que não percebem inglês e eu acho sempre que o texto é muito importante”, explica.

Nestes dias antes dos concertos, cheios de entrevista­s, Gisela está sempre com uma caneca de chá quentinho à frente. Cuida da sua voz “frágil” como quem cuida de um bem precioso. “Se me sentir a ficar doente, bebo logo um sumo de laranja e um chá de gengibre. É ótimo.” Fala depressa, sempre a sorrir, interrompe as histórias para cantarolar, tem um entusiasmo enorme por tudo o que faz porque só sabe ser assim: “Eu tenho de me controlar porque ás vezes sou muito intensa, eu sei, mas não consigo fugir de mim própria.” No ano passado, quando acordou na cama do hospital depois de um problema grave de saúde, fez as pazes consigo: “Eu estou sempre a dizer que gostava de ser mais calma e discreta mas não é verdade, eu gosto de ser assim como sou. Mas sei que sou muito absorvente e muito emocional.”

“Não consigo esquecer o meu percurso. As pessoas que querem esquecer coisas do passado fazem tudo errado. Mesmo as coisas más tiveram um lado bom.”

A “pequenina”, como alguns amigos lhe chamam, ri muito e chora muito também. Ainda no outro dia, estava a cantar em Estrasburg­o e de repente estava a soluçar em palco. “Não conseguia parar”, conta. “Lembrei-me da minha tia Arminda, irmã da minha avó Micas, que emigrou antes do 25 de Abril. Ela sempre foi a minha tia de França, foi por causa dela e dos meus primos que eu quis aprender a falar francês. E ela sempre me disse: sai daqui, vai conhecer o mundo. E agora eu estava ali e estava a pensar nisso tudo. Eu venho de uma família muito pobre, a minha infância foi muito difícil. Nada na minha vida indicava que eu ia ser uma mulher de sucesso, que sou. Nada mesmo. As probabilid­ades maiores era ir trabalhar para uma fábrica ou um supermerca­do, o que tem imenso mérito mas não seria tão feliz porque o que me faz feliz é cantar. Mas afinal eu tenho esta vida, viajo pelo mundo, vejo palcos maravilhos­os, conheço pessoas incríveis. Não consigo pensar nisto tudo e não me emocionar.”

Isto tudo dito de rajada, quase sem fôlego. Mesmo se já não tem muita paciência para contar a história da sua vida e de como morava em Barcelos e ouvia a Amália na rádio e começou a gostar de fado, a verdade é que também não está no seu feitio esquecer como tudo começou: “Uma das coisas que me faz ser intensa também é eu não me esquecer do meu percurso, as pessoas que querem esquecer coisas do passado fazem muito mal, fazem tudo errado. Mesmo as coisas más tiveram um lado bom.”

“Mas não vou contar as minhas histórias para as revistas cor-de-rosa. Não é por aí”, avisa. É verdade que gosta de escrever no seu blogue e que no Instagram mostra um bocadinho da sua vida, a sua casa, os gatos, os cozinhados, a costura e os bordados, é verdade que gosta de se filmar a cantar e dar um pouco de si a quem a segue. Mas “há uma diferença entre aquilo que é mesmo privado, a intimidade, e aquilo que é a vida normal, que é o que eu mostro. As pessoas acham que sabem coisas da minha vida, mas não me conhecem”, diz, sem hesitar. “Quando estou indecisa num convite, eu penso sempre: Gisela, o que é que tu queres? É ser famosa ou é cantar? É que quando ser famoso é o principal, isso muda tudo, aí tu vais a direito, não há critério. E não é isso que eu quero.”

“É tudo muito efémero, assim como as palmas”, conclui. “Por isso é que dou graças a Deus por ter os pés tão assentes na terra: é muito fácil uma pessoa iludir-se. Mas eu sei que esta vida que tenho é toda assim: é este momento e depois acabou. Por exemplo, os concertos: são dias e dias de trabalho para montar um espetáculo e passadas duas horas já está.” Isto anda tudo ligado: “É como a comida. Estás ali horas na cozinha, depois comes e desaparece­u.” É verdade. Mas o prazer que dá, seja um bom prato ou um bom concerto, faz que valha tudo a pena.

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