Arquitectura fundida
Algumas figuras públicas são tratadas como encarnações seculares de sábios religiosos. Podem não desejar essa promoção nem detectar a sua chegada.
Uma consequência inevitável da longevidade enquanto figura pública é a promoção automática a um escalão superior de figura pública: caso se aguentem algumas décadas em funções, deixam de ser tratadas como as outras figuras públicas e passam a ser tratadas como encarnações seculares de sábios religiosos – aqueles que costumavam ficar quinze anos seguidos sentados em posição de lótus a alimentar-se exclusivamente de bambu antes de explicarem o mundo em parábolas. A figura pública pode não desejar essa promoção, e pode até nem detectar a sua chegada. Os sinais acumulam-se lentamente. De um momento para o outro, frases suas começam a ser citadas em memes inspiradores no Facebook; há presidentes a espetar-lhes condecorações no peito, recebe convites mensais para debates em que se tenciona “pensar o país”. E um dia, subitamente, a figura pública dá por si sentada à frente de uma câmera de televisão, enquanto Fátima Campos Ferreira lhe pergunta coisas como “Considera-se uma pessoa de emoções?” ou “Acredita em Deus?”.
Acontece a todos e aconteceu nesta semana a Álvaro Siza Vieira, a quem a RTP 1 dedicou um programa inteiro chamado Arquitecto dos Sonhos, no qual a entrevistadora apresentou uma versão bastante contida do seu procedimento habitual, que consiste em interrogar qualquer pessoa não como alguém que se destacou no seu ramo de actividade específico, mas como um co-autor secreto de O Labirinto da Saudade. Praticamente não houve perguntas sobre “Portugal”. Em nenhum momento foi mencionado o mistério da “identidade lusitana”. Siza Vieira limitou-se a ser fustigado com questões mais esotéricas, do género: “Há em si um desejo de se realizar fundindo-se no anonimato dos homens?” É o tipo de questão que pode levar qualquer pessoa pouco inclinada a fundir-se no anonimato dos homens a rever imediatamente a sua posição, mas o arquitecto comportou-se sempre como se fossem as perguntas mais razoáveis do mundo, e conseguiu responder a todas fumando apenas setenta cigarros. O melhor momento do programa surgiu no fim, já depois dos créditos finais, quando o entrevistado comentou o desconforto da cadeira em que estivera sentado, e a entrevistadora concordou entusiasticamente. “São duras como o raio! Foi o senhor que desenhou isto?” Siza confirmou. “Desenhei-as para o Pavilhão de Portugal. Era para as pessoas não ficarem muito tempo a ocupar os lugares.”
Foi uma boa piada sobre forma e função, ilustrando a inegável paz de espírito de quem se preparava para fumar o septuagésimo primeiro cigarro do dia. Os arquitectos nem sempre reagem tão bem quando lhes criticam as cadeiras. Em 1906, Frank Lloyd Wright foi convidado para projectar o novo edifício de uma empresa de sabonetes, e desenhou um conjunto de cadeiras de três pés que tombavam sempre que o ocupante se inclinava demasiado para um dos lados. As secretárias da companhia baptizaram-nas como “suicide chairs”. Convidado a desenhar cadeiras novas, Lloyd Wright terá aconselhado as funcionárias a “sentarem-se direitas” e a “deixarem de fazer tolices nas minhas cadeiras”.
É fácil imaginar o rosto de Lloyd Wright ao dar essa resposta: uma expressão menos parecida com a de Siza Vieira e mais parecida com a de Fernando Santos, o seleccionador nacional que nos últimos anos conseguiu desenhar uma equipa deliberadamente desconfortável, para os adversários (e, por vezes, os espectadores) não ficarem muito tempo a ocupar os respectivos lugares.
O projecto voltou a funcionar nesta semana, numa goleada sobre a Lituânia, também ela triunfantemente transmitida pela RTP, cujos comentadores começam a mostrar os primeiros vestígios (ainda residuais) de relutância em tratar o arquitecto dos sonhos chamado Cristiano Ronaldo como o único motivo de interesse de cada jogo em que participa. Até há pouco tempo, faziam-no 90 minutos por jogo; agora fazem-no 75 ou 80, no máximo. Ronaldo marcou três golos, e ainda não se fundiu no anonimato dos homens, mas o relógio não pára e, pelos meus cálculos, já só lhe faltam 50 anos para alguém da RTP1 lhe começar a fazer perguntas sobre Deus e o destino lusitano.
A equipa que relatou e comentou o jogo soube, ainda assim, preservar algumas tradições. Por exemplo, assim que soube que o árbitro da partida se chamava Bouquet, o espectador preparou-se para o inevitável trocadilho. Era uma questão de tempo. Chegada a oportunidade – uma feroz admoestação verbal a Bruno Fernandes –, o relatador não desiludiu: “O senhor Bouquet não está ali para oferecer flores... porque isso não seria futebol... seria outra coisa.”
Entretanto, o Canal Hollywood passou o filme San Andreas. Digo o Canal Hollywood, mas pode perfeitamente ter sido outro qualquer. San Andreas, de 2015, tem-se imposto como fortíssimo candidato a substituir Sozinho em Casa ou Espião nas Horas Vagas no cargo oficial de filme-que-passa-mais-vezes-na-TV. Uma pessoa desprevenida arrisca-se a ver San Andreas inadvertidamente oito ou dez vezes na sua vida, pelo simples facto de ter um telecomando na mão.
O filme é um herdeiro bastardo dos filmes-catástrofe dos anos 1970, tradição inaugurada por Earthquake de 1974, no qual Charlton Heston é abalado pelas pressões tectónicas resultantes de ter Ava Gardner como esposa e Geneviève Bujold como amante. San Andreas é obrigado a safar-se com um elenco ligeiramente menos canónico, mas aproveita-o da melhor maneira possível. Kylie Minogue entra em cena durante três fulgurantes minutos para, por esta ordem: 1) tratar mal uma empregada de mesa; 2) insultar uma das protagonistas; 3) mergulhar de cabeça do 80.º andar de um arranha-céus.
Qualquer filme-catástrofe é indexável à história da tecnologia, e San Andreas limita-se a exibir os métodos mais recentes para renovar digitalmente infraestruturas urbanas. Prédios estremecem violentamente, como pessoas sentadas em cadeiras de Frank Lloyd Wright. Pontes desabam. Contentores são arremessados pelo ar e aterram em cima de quatro figurantes multiplicados por computador para parecerem quarenta. No meio do caos, Dwayne “The Rock” Johnson declama guturalmente as suas parcelas de guião, que consistem em duossílabos urgentes: “espera!”, “anda!”, “corre!”. Interpretando o pior funcionário público de todos os tempos (um piloto de helicóptero dos bombeiros locais), Dwayne abandona alegremente os seus deveres cívicos ao primeiro safanão sísmico e começa a cometer crimes. Após espatifar o helicóptero, rouba uma carrinha. Após espatifar a carrinha, rouba um avião. Após espatifar o avião, rouba uma lancha a motor. Os três meios de transporte têm em comum o facto de serem todos um pouco mais pequenos do que os seus antebraços.
A lancha revela-se especialmente útil no terceiro acto do filme, quando o obrigatório tsunami avança na direcção de São Francisco, com todo o ar de quem pretende realizar-se fundindo-se no anonimato dos restantes efeitos especiais. O protagonista negoceia habilmente os múltiplos obstáculos (mais contentores, mais lanchas) e chega são e salvo aos créditos finais, em que uma bandeira americana é içada no meio dos destroços, simbolizando a resistência perene da iconografia cinematográfica mais estafada. “Agora é tempo de reconstruir”, diz, ao som de violinos, enquanto, fora de cena, dezenas de arquitectos acendem os seus cigarros e começam a projectar cadeiras desconfortáveis.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Ronaldo ainda não se fundiu no anonimato dos homens, mas o relógio não pára e já só lhe faltam 50 anos para alguém da RTP1 lhe começar a fazer perguntas sobre Deus e o destino lusitano.