As memórias de Zé Pedro
Quando passam dois anos sobre a sua morte, chega às livrarias a biografia ilustrada de Zé Pedro, com textos de André Rito e ilustrações de Pedro Lourenço, repleta de pequenas histórias e muitas curiosidades sobre o icónico guitarrista dos Xutos & Pontapés
Recordações do pai do
rock e do punk português estão em filme, em livro e agora também em ilustrações.
Aprimeira vez que André Rito entrevistou Zé Pedro foi em 2009, quando trabalhava no jornal Sol. Encontraram-se num café em Belém e ficaram mais de duas horas à conversa. “Ele foi superacessível”, recorda o jornalista. “Depois disso, como eu trabalhava muito na área da cultura, o Zé Pedro era uma pessoa a quem eu recorria para pedir ajuda, opiniões, conselhos. Ele estava sempre disponível. Quanto tive de escrever sobre o movimento punk em Portugal voltei a ter longas conversas com ele, porque ele tinha estado muito envolvido. Nunca me deixava sem resposta. Acho que todas as pessoas que o conheceram dizem o mesmo. Não há muita gente assim, generosa, boa, que se preocupa genuinamente com os outros.” Não eram amigos, no verdadeiro sentido da palavra, mas eram suficientemente próximos para André Rito ter ficado feliz quando o desafiaram a escrever uma biografia do músico. “Não é bem uma homenagem mas é um bocadinho uma retribuição a uma pessoa por quem eu tinha uma estima enorme.”
O livro, que chegou nesta semana às livrarias, poucos dias antes do segundo aniversário da morte de Zé Pedro, é uma biografia ilustrada por Pedro Lourenço. Trata-se de uma edição da Suma das Letras, que já tinha editado outras biografias ilustradas de músicos, como Freddy Mercury e David Bowie, e que escolheu Zé Pedro para se aventurar no universo da música portuguesa. “Faz todo o sentido porque o Zé Pedro é uma figura incontestável da música em Portugal”, considera André Rito.
Se dúvidas houvesse, além deste livro, o músico também já tem um filme biográfico: intitulado Zé Pedro Rock ‘n’ Roll e realizado por Diogo Varela, estreou-se no DocLisboa, em outubro, onde depois de uma sessão esgotada e aplaudida no cinema São Jorge ganhou o Prémio do Público.
Isto ao mesmo tempo que há um novo best of dos Xutos & Pontapés à venda, reunindo 40 músicas sob o título 40 Anos a Dar no Duro, e há ainda um outro livro, com o título À Minha Maneira, que tenta fazer a história do grupo através de entrevistas feitas por Ana Ventura a Tim, Zé Pedro, Kalu, João Cabeleira e Gui.
Como se conta a história de um ídolo?
“O Zé Pedro nasceu pela meia-noite de 13 para 14 de setembro de 1956, no quarto número três da Maternidade do Pavilhão da Família dos Hospital Militar da Estrela. Por superstição, a mãe escolheu registar o filho no dia seguinte: o Zé Pedro era um bebé de cabelo castanho-claro, olhos azuis e três quilos e oitocentos.”
Ao primeiro parágrafo já percebemos que esta é uma biografia feita de pormenores. E isso é bom. Perante a “monstruosidade” que foram a vida e a carreira musical de Zé Pedro, tendo em conta que já há uma boa
“Há pouca gente assim, generosa, boa, que se preocupa genuinamente com os outros”, diz André Rito sobre o músico Zé Pedro.
biografia dos Xutos & Pontapés (Conta-Me Histórias, de Ana Cristina Ferrão, 2009) e limitado pelo formato da biografia ilustrada que não lhe permitia alongar-se muito no texto, André Rito optou por procurar “pequenas histórias, mais privadas ou mais laterais” que mostrassem como era o Zé Pedro, os seus gostos, a relação com os outros, a sua força de vontade (também há quem lhe chame teimosia).
“Com uma vida tão rica como era a dele não podia ter a pretensão de contar tudo. Mas para mim havia três níveis que era muito importante respeitar: a família, a banda e a mulher”, explica o autor. Por isso, além da pesquisa que fez em livros, jornais e outros documentos, procurou entrevistar pessoas que lhe dessem diferentes pontos de vista, que tivessem conhecido o Zé Pedro em fases e contextos diferentes. Foram elas: a irmã Helena Reis (que também é autora da biografia À Minha Maneira, editada em 2018), o baterista dos Xutos & Pontapés, Kalu, a mulher de Zé Pedro, Cristina Avides Moreira, os jornalistas Henrique Amaro e Lia Pereira e os músicos Tó Trips, Pedro Ayres Magalhães, Alex, Xana e Flak. São eles que nos guiam pela vida de Zé Pedro.
“Foi um miúdo precoce: com nove meses já dançava e tinha pouco mais de um ano quando a mãe o apanhou a dançar sozinho na cozinha”, conta-se no livro. Cresceu rodeado de irmãos, numa família grande e muito unida, num apartamento nos Olivais. O primeiro concerto a que assistiu foi de Miles Davis, no Cascais Jazz, em 1971. Aos 21 anos, fez com a irmã Leny um inter-rail pela Europa que terminou na “pacata aldeia francesa” de Mont-de-Marsan para assistir a um festival punk onde tocavam The Clash. No regresso a Lisboa rapou o cabelo e adotou um estilo punk, com alfinetes nos lábios e correntes à cintura.
“O encontro com Pedro Ayres Magalhães, que na altura tinha um grupo que era os Faíscas, foi decisivo”, conta André Rito. “Numa noite de festa em casa de um amigo, entre ganzas e cervejas”, os dois amigos fizeram um pacto de sangue: picaram os dedos e fizeram juras de amizade eterna. “E a verdade é que esse pacto cumpriu-se”, conta o jornalista. “Eles foram amigos até ao fim.”
Uma carreira aos Xutos & Pontapés
Foi Pedro Ayres Magalhães que o incentivou a tocar guitarra e a criar uma banda. O primeiro a juntar-se foi Zé Leonel, que era o vocalista. Depois, veio Kalu: “Uns gajos espalhafatosos, davam muito nas vistas, o Zé Pedro todo cheio de alfinetes, nunca tinha visto coisa igual. Vinha do Restelo, dos subúrbios das boas famílias, estava cheio de medo”, recorda o baterista. O baixista veio da Margem Sul, “tímido, com óculos na cara e uma camisola xadrez”: era o Tim. Eram para ser os Beijinhos & Parabéns, mas acabaram a chamar-se Xutos & Pontapés. Só mais tarde chegariam João Cabeleira e Gui.
Apresentaram-se nos Alunos do Apolo, tocaram no Rock Rendez Vous e até numa prisão em Macau. Não foi um caminho fácil. E André Rito não esconde as dificuldades, os concertos nas matinés dos liceus, as discussões, os excessos, a heroína. O grupo foi recusado pela Valentim de Carvalho, que não gostou do nome. E foi Tozé Brito que os levou para a Polygram para fazer Circo de Feras, o disco que os elevou para outro patamar.
Até podem achar que a partir daqui já sabem a história toda, dos Contentores à Chuva Dissolvente, mas continuem a ler o livro porque haverá certamente um outro pormenor que vos vai surpreender. Além dos Xutos,
Zé Pedro tocou com outros grupos, como Palma’s Gang e os Ladrões do Tempo, teve um bar, o Johnny Guitar, foi DJ e fez um programa na rádio.
No dia 4 de novembro de 2017, o Coliseu de Lisboa encheu-se de fãs a gritar pelos Xutos & Pontapés mas, sobretudo, a gritar pelo Zé Pedro. Os que ali estavam a cantar Dados Viciados e Vida Malvada sabiam que ele estava doente e aquele concerto, mais do que uma despedida, foi uma maneira de lhe mostrar o seu apoio e lhe transmitirem alguma força. No seu lugar habitual, do lado esquerdo do palco, a produção colocara uma cadeira para o músico descansar. Estava muito magro e quase não aguentava o peso da guitarra. Mas tinha um enorme sorriso na cara. A última canção que se ouviu nessa noite, entoada em coro por toda a gente, foi Para sempre. No dia seguinte, Zé Pedro voltaria para o hospital. Morreu a 30 de novembro, aos 61 anos.
A sessão de lançamento de Zé Pedro – Uma Biografia acontece na próxima sexta-feira, dia 29, às 19.00, na Livraria Ler Devagar, em Lisboa.
O primeiro concerto dos Xutos & Pontapés foi nos Alunos de Apolo em janeiro de 1979. Não tinham ensaiado. Tocaram seis músicas em cinco cinco minutos. “Somos os maiores, vamos partir tudo.”