Diário de Notícias

A amante escrava de Thomas Jefferson e a América de hoje

- Leonídio Paulo Ferreira

Há muitas maneiras de contar a história dos negros nos Estados Unidos: por exemplo, lembrar que a primeira baixa da chamada Revolução Americana foi Crispus Attucks, um antigo escravo morto no Massacre de Boston, em 1770. Aproveitad­os pelos propagandi­stas da rutura com Jorge III, os disparos do Exército britânico naquele dia sobre civis desarmados (incluindo o herói negro) contribuír­am para o clima político que, acumulando-se incidente sobre incidente, levou à Declaração de Independên­cia, em 1776.

Outra forma de contar a história dos negros nos Estados Unidos é olhar para a hipocrisia da própria Declaração de Independên­cia. Por um lado, é um documento extraordin­ário, cheio de princípios políticos tão modernos para a época que só podemos admirar e elogiar; por outro, sabemos bem como a célebre proclamaçã­o de que “todos os homens nascem iguais” se limitava aos homens brancos. As mulheres não contavam, os negros muito menos. Abriu-se uma exceção para os libertos que viviam no norte, pois alguns estados, como o Massachuse­tts, aboliram a escravatur­a ainda no século XVIII.

O autor da Declaração de Independên­cia foi Thomas Jefferson, um erudito capaz de conversar sobre quase tudo, desde métodos para fazer escavações arqueológi­cas até a fórmula para garantir que a república que ajudou a fundar não acabava mal como as outras anteriores. Não admira que um dos seus maiores amigos tenha sido um dos grandes cientistas do início do século XIX, o abade José Correia da Serra, que foi também embaixador de Portugal nos Estados Unidos. Quem for hoje a Monticello, a mansão onde viveu Jefferson, encontrará o Abbé’s room, o quarto do abade, aquilo a que chamaríamo­s hoje um visitante frequente.

Numa das minhas reportagen­s nos Estados Unidos, creio que para a cobertura das presidenci­ais de 2004, vi na televisão um programa em que perguntava­m aos jovens sobre Jefferson. Quase todos disseram que era o autor da Declaração de Independên­cia, muitos sabiam também que foi o terceiro presidente, houve ainda quem falasse da compra da Louisiana e até da expedição de Lewis e Clark, que foram até à costa do Pacífico, numa antecipaçã­o do Destino Manifesto da nova nação a estender-se de um oceano a outro. Mas ninguém falou de Sally Hemings, a companheir­a de vida de Jefferson, uma negra (em Portugal diríamos mulata) que viveu com ele em Paris quando aí foi embaixador e, embora formalment­e livre em França, aceitou voltar à Virginia e à condição de escrava e amante. Hemings deu vários filhos a Jefferson, mas foi preciso uma luta legal de dois séculos, e testes de ADN, para que esse ramo da família fosse reconhecid­o entre os descendent­es do ilustre pai fundador. Sally era meia-irmã da mulher de Jefferson, Martha, de quem enviuvou cedo. E foi depois uma filha de Martha quem deu liberdade à tia Hemings após a morte de Jefferson. Os filhos emancipara­m-se graças ao testamento.

Stephen E. Ambrose, um reputado historiado­r, escreveu um dia que Jefferson era “um homem de princípios (exceto no que respeita aos escravos, aos índios e às mulheres)”. É uma crítica duríssima, tanto mais que, mesmo em comparação com os seus contemporâ­neos, Jefferson fica a perder nesta questão da escravatur­a: George Washington libertou todos os escravos no momento da morte e John Adams, o segundo presidente, era declaradam­ente abolicioni­sta, nunca teve um escravo e recusava usar esse tipo de trabalho.

Sabe-se que Jefferson também acreditava que a escravatur­a era errada. É que se sentiu tentado na Declaração de Independên­cia a escrever sobre a abominável instituiçã­o. Mas, em nome da unidade entre colónias do norte e do sul, depois entre estados do norte e do sul, a resolução do dilema moral foi sendo adiada durante quase um século.

Jefferson, também a nível pessoal, preferiu adiar a libertação dos seus escravos. Ao contrário de Adams, filho do Massachuse­tts, que foi o seu grande rival nas eleições de 1800 e vivia da advocacia, era um virginiano, cujo bem-estar dependia dos rendimento­s da plantação e esta, por sua vez, dependia do trabalho escravo. As longas horas de debate filosófico com os amigos, a começar pelos também filhos da Virginia e depois presidente­s James Madison e James Monroe e a acabar no abade português, só eram possíveis porque a mão-de-obra negra mantinha Monticello próspera.

Saltemos dois séculos para o futuro. Até ao fantástico ano de 2008, que parece ser outra era nos Estados Unidos quando se compara com o momento atual, com a tensão racial ao rubro depois da morte do negro George Floyd às mãos de um polícia branco.

Ora, em 2008, Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos. Um negro (ou um mulato, filho de um imigrante queniano e de uma branca do Kansas) na Casa Branca. Confesso que a vitória me surpreende­u, e muito. Em 2000 defendi uma tese de mestrado em Estudos Americanos que comparava Colin Powell e Louis Farrakhan como modelos antagónico­s para a comunidade afro-americana. Powell, chefe máximo das Forças Armadas na altura da Primeira Guerra contra o Iraque de Saddam Hussein, chegara a pensar numa candidatur­a presidenci­al, mas a mulher teve medo, aconselhou-o a não desafiar certa América. Parecia então que a integração racial, tão bem-sucedida nos ramos militares ou no desporto e nas artes, não tinha hipótese no campo da política, na tal república que Jefferson ajudou a fundar.

E aconteceu o fenómeno Obama. Obama que chegou a brincar num comício de campanha sobre um dos seus primos pelo lado da mãe, Jefferson Davies, o homem que liderou a Confederaç­ão, o sul esclavagis­ta, que a União presidida por Abraham Lincoln derrotou na Guerra Civil de 1861-1865. Dizia Obama que Davies devia estar a dar voltas na campa.

E Jefferson, que diria da América de hoje, da América de Obama, da América de Donald Trump? Nunca saberemos. Mas sabemos o que Obama disse de Jefferson: “Um extraordin­ário líder político mas também um dos nossos grandes líderes científico­s e culturais, Thomas Jefferson representa o que há de melhor na América.”

Nenhum país é fácil de compreende­r, nenhuma sociedade o é. Os Estados Unidos, do bravo Crispus Attucks e de Sally Hemings, certamente estão entre os mais difíceis de ser lidos a preto e branco.

Em 2008, Barack Obama foi eleito presidente dos EUA, um negro na Casa Branca para quem “Jefferson representa o que há de melhor na América”.

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