Claro que seja qual for o plano que Costa Silva está a desenhar, existirá sempre uma visão ideológica, uma maneira de ver o mundo, uma solução política que no momento em que for apresentada pelo Governo deixará de ser a dele. Depois, cá estaremos nós para
Oprocesso pelo qual Costa Silva foi nomeado consultor do Governo foi errado. Ao que agora sabemos, o gestor começou a trabalhar no fim de abril e só nesta semana foi tornado público que ia executar essa função. Numa democracia há formalidades que têm de ser cumpridas, publicidades obrigatórias. Não são detalhes, são princípios de transparência e de escrutínio, o secretismo numa democracia tem de ser uma exceção.
Também é errado que o Estado promova o trabalho gratuito; mais do que isso, que o enalteça. Costa Silva é, com certeza, alguém imbuído de um enorme sentido patriótico e, dada a sua carreira profissional, o que o erário público lhe poderia pagar seria insignificante para as suas finanças pessoais, mas, mais uma vez, estamos no campo dos princípios: quem trabalha tem de ser remunerado.
Neste caso, soma-se o mau exemplo que o Estado dá não só para a comunidade em geral, mas também para as pessoas que trabalham para o bem comum. São bravatas deste género que ajudaram ao clima geral instalado de que quem faz trabalho político tem de ser mal pago. Não tarda teremos apenas ricos e pessoas que arranjam, digamos assim, outras formas de se remunerar em cargos políticos.
Estas informalidades e o esquecimento de princípios já tinham acontecido no episódio Lacerda Machado (que simpaticamente quis ajudar o primeiro-ministro e que, imagino, menos simpaticamente está como administrador na TAP). As duas situações, porém, não são comparáveis.
As qualidades de Lacerda Machado eram ser da confiança pessoal de António Costa e seu amigo. Não vale a pena repetir o que aqui escrevi na altura, mas importa recordar que a confusão entre o plano pessoal e institucional é claramente anómala e propiciadora de situações pouco transparentes e promíscuas – só alguém muito ingénuo desconhece o valor da fama de alguém ser muito próximo de um homem com o poder de um primeiro-ministro.
O papel que Costa Silva está a desempenhar para o Governo não é sequer parecido com o de Lacerda Machado. Não há questões de confiança ou amizade pessoal, o gestor e professor universitário colabora com o Governo porque este lhe reconhece qualidades profissionais apropriadas e a sua tarefa não é propriamente ir falar com uns indivíduos ou negociar uns contratos.
Apesar de o curriculum vitae de Costa Silva se adequar à tarefa em causa e haver um grande consenso acerca do seu valor em várias áreas, a sua escolha seria sempre política e discricionária.
Pode-se, assim, criticar a escolha da pessoa, a sua experiência, as suas opiniões, o seu posicionamento ideológico, se é adequada à missão, mas é difícil perceber as vozes revoltadas contra chamar alguém de fora da política ativa para ajudar numa tarefa específica. Muitos desses descontentes, aliás, contam-se entre aqueles que tudo têm feito para afastar os melhores e mais competentes de tarefas políticas. Os que estão sempre prontos a ver incompatibilidades em todo o lado, os que acham que os políticos ganham de mais, os que utilizam casos excecionais para generalizações.
Não me preocupa nada, bem pelo contrário, que o Governo procure alguém que ajude a pensar e/ou a preparar um plano. E se as circunstâncias extraordinárias que vivemos exigem uma muito maior reflexão, um pensamento que se adapte a uma realidade em grande parte desconhecida, não é fundamental, longe disso, que uma situação extrema como a presente imponha a presença de alguém de fora do ambiente político. Muitas vezes é fundamental ir buscar alguém que esteja fora da rotina da governação, longe dos problemas que exigem soluções pontuais, afastado da bolha política que reduz tudo à conjuntura.
Carlos Drummond de Andrade, numa crónica de 1962, escrevia que como durante três dias não tinham sido publicados jornais tinham deixado de acontecer coisas no mundo. Agora não são precisos jornais para que estejam sempre a acontecer coisas que nada valem mas que ocupam espaço e tempo. A política não se consegue desprender disso.
Os ministros e secretários de Estado, ou seja, os que deviam ser políticos na melhor aceção da palavra, estão sobrecarregados com tarefas que não os deviam ocupar tanto. O depauperamento da qualidade dos agentes públicos, a desmotivação do funcionalismo causada por décadas de ausência de uma boa avaliação e de perspetivas de carreira, o envelhecimento, ajudaram a despolitizar os cargos de escolha política. Já Cavaco Silva tinha noção disso quando dizia que os políticos dos ministérios tinham de saber muito do setor, e não era por estratégia, era por saber que já havia problemas de conhecimento dos temas nos funcionários dos ministérios.
Tentar trazer quem pode ajudar a ver a floresta em vez de só a árvore, longe – o mais possível – das sempre normais pressões das várias forças sociais é sempre bom e desejável.
Os partidos estão no seu direito de não quererem falar com o homem designado pelo Governo (que entretanto, mostrado que o processo foi mal conduzido, veio dizer que não falará com eles). Mas o plano nunca será de Costa Silva, será sempre do Governo, o interlocutor para troca de ideias não será relevante para a avaliação política.
Seja qual for o plano que Costa Silva está a desenhar, existirá sempre uma visão ideológica, uma maneira de ver o mundo, uma solução política que no momento em que for apresentada pelo Governo deixará de ser a dele. Depois, cá estaremos nós para avaliar.