Alguém que aceita planear a reconstrução da economia, no seguimento da crise sanitária, mostra claramente que não é a pessoa indicada, pois as economias não se gerem por planos nem um plano económico pode sair de uma só cabeça.
Comecemos pelo elogio para de seguida analisarmos o que a muitos parecerá um erro técnico. Neste caos, trata-se da ideia de pedir a uma pessoa que desenhe um plano de reconstrução económica que, afinal, deverá ser uma quimera tecnocrática com objetivos políticos. Mesmo que não haja identificação política, é possível concordar que o sucesso do atual primeiro-ministro se deve a uma certa coerência de direções e de políticas. Na verdade, tem encontrado bissetrizes de ação entre forças políticas e sociais com pensamentos distintos, explorando a evidência de que os objetivos são mais importantes do que os meios. Afinal, era preciso acabar com os erros da famigerada troika, melhorar os crassos desníveis de igualdade e oportunidade e devolver o país ao concerto das nações europeias. Tal foi atingido sem sobressaltos sociais e com uma compreensão generalizada por parte da população que vota nos partidos que contribuíram para tal desiderato.
Do ponto de vista da gestão das matérias de finanças públicas e macroeconómicas, a inteligência governativa passou também pelo entendimento entre o primeiro-ministro e o ministro das Finanças. Aliás, devemo-nos perguntar como é que conseguiu prontamente saber que Mário Centeno era a pessoa certa para o lugar certo, indo buscá-lo a um dos principais centros de informação e investigação da economia portuguesa, onde, tal comoVítor Constâncio, era pessoa menos grata, por questões ideológicas, mas plenamente respeitada na capacidade de entender a complexidade do funcionamento das economias modernas europeias. A coordenação entre os dois governantes foi uma das chaves do sucesso desta história.
Deixemos os elogios por aqui para agora recordarmos uma crítica e fazermos outra. A crítica a recordar já foi exposta em artigo anterior a este e diz respeito ao tratamento do caso do Novo Banco; a nova tem que ver com esta ideia de convidar uma só pessoa para elaborar um plano para a reconstrução da economia, no seguimento do impacto da crise sanitária.
Talvez a melhor forma de sumariar o que penso sobre o assunto é parafrasear um famoso cómico e dizer que alguém, por muito qualificado que seja, que aceita fazer um plano destes, mostra claramente que não é a pessoa indicada. Porquê? Porque as economias não se gerem por planos, mesmo que lhes apliquemos meia dúzia de qualificativos, nem um plano económico pode sair de uma só cabeça, por mais brilhante que seja.
O estranho da iniciativa é que o primeiro-ministro, pertencendo à geração a que pertence, e estando ativo na política há tantos anos, sabe perfeitamente que estes planos foram parar ao caixote da história.* Alguém se lembra dos planos de desenvolvimento regional de Cavaco Silva? E alguém sabe dizer em quanto importaram os planos de fomento, do tempo da ditadura, além de serem grandes máquinas de propaganda? Claro que estes planos, ao serem, como se diz na gíria, “indicativos”, congregavam esforços institucionais e anunciavam princípios de orientação política dos governos que os mandam fazer. Com eles, Salazar, Caetano e Cavaco anunciaram que tinham preocupações para além dos níveis do défice público, da dívida e da inflação. Todavia, recordemos que foram exercícios estruturados, complexos e não meras ideias saídas de uma só cabeça. Além disso, o atual Governo, com a sua história de coerência e de ação concertada, não tem precisado destes instrumentos para dizer ao que vem. Por que precisa agora?
Entretanto, há dois planos anteriores mais parecidos com a atual iniciativa. Mas, alguém se lembra do relatório Porter, pedido por um ministro da Indústria de Cavaco Silva? Que resultados teve? Ninguém sabe e nunca ninguém saberá. É certo que esse relatório custou milhões de contos e o atual plano é grátis, segundo informação que temos. Mas isso importa muito pouco. O outro plano que foi para um lugar triste da história é o memorando de entendimento da troika. Como sabemos, o documento foi feito por pessoas de vários organismos nacionais, desde o banco central a faculdades e ministérios, e hoje nada nos diz, baseado que estava em premissas e hipóteses de baixo gabarito.
Ora, podendo nós presumir que o primeiro-ministro sabe isto tudo, partindo do princípio de que a governação tem sido e mantém-se inteligente, somos autorizados a concluir que este pedido de plano tem um alcance maior. Como tudo o que vem do Governo é necessariamente política, esse objetivo maior só poderá ser político. E daí uma pergunta final. Será que este plano não é mais do que um instrumento de negociação com os partidos de esquerda e, assim, afinal, mais um ato de um réquiem pelo fim da coligação de esquerda?