Épater la Borgensie
O realismo é sempre um aartifício, por isso Borgen é tão “realista” sobre política como Anatomia de Gray é sobre medicina ou Perry Mason sobre advocacia.
Apalavra dinamarquesa hygge teve o seu ano de glória em 2016, num caso exemplar de internacionalização da marca. Publicaram-se livros inteiros sobre o conceito, o Oxford Dictionary incluí-a na sua lista de vocábulos do ano e foi promovida ao panteão universal das palavras supostamente intraduzíveis, ao lado de outros clássicos da categoria, como a alemã Waldeinsamkeit, a russa toska ou a nossa saudade. Como em todas elas, “intraduzível” significa apenas que muitas vezes não há um equivalente directo, pelo que traduzir é também explicar. E em 2016 era impossível abrir um jornal sem tropeçar numa explicação. Hygge é qualquer coisa como uma sensação de bem-estar, conforto, aconchego. Conjura lareiras, vidros duplos, tapetes felpudos, camisolas de malha, comida caseira e pressão arterial 12/8. Hygge é o que acontece quando tudo o que acontece é agradável, e o conceito foi integrado na manifestação específica de escandifilia universal que atribui aos países nórdicos o monopólio de segredos da felicidade.
Às primeiras impressões, talvez não seja óbvia a ligação desta hipertrofia de aconchego com outra bem-sucedida exportação escandinava, o nordic noir. Mas não haverá também algo extremamente confortável em séries como The Killing, The Bridge ou Wallander, com as suas paletes (cromáticas e emocionais) feitas de encomenda para a distribuição internacional de televisão de prestígio? Nomes exóticos, crimes perversos, conspirações políticas, mobiliário elegante, paisagens cinzentas, personagens irritadíssimas que, ainda assim, nunca levantam a voz – independentemente da qualidade, a consistência da fórmula é tão acolhedora como uma colecção de pantufas.
O melhor exemplo de hygge involuntário será Borgen, que a SIC Radical tem vindo a repetir todas as noites, alguns anos depois da primeira triunfante emissão em Portugal. Ao contrário das suas congéneres, Borgen descarta assassínios simbólicos e desmembramentos rituais e eleva a actividade política a primeiro plano. A protagonista é Birgitte Borgen, líder do Partido dos Borgens Moderados, que, nas vésperas de um acto eleitoral, se vê dividida entre dois potenciais parceiros de coligação, e entre as atitudes antagónicas de dois conselheiros, o seu experiente mentor Cesário Borgen, e o jovem e rebelde spin doctor Bjorn Borgen.
O rastilho do enredo é uma condição clínica conhecida como “enfarte de Hollywood”, que costuma atacar personagens terciárias na primeira meia hora de um filme ou uma série, matando-os durante o acto sexual, e deixando um crucial dispositivo narrativo na sua pasta ou bolso do casaco. A vítima foi o assessor do líder de um dos principais partidos políticos do país, e a mulher que estava com ele a principal jornalista do país, que imediatamente telefona a pedir ajuda ao seu ex-namorado, assessor da líder de outro dos principais partidos políticos do país – porque, segundo Borgen, todo o complexo político-mediático da Dinamarca consiste em precisamente sete pessoas.
Num debate televisivo (moderado pela apresentadora Alexandra Borgen), Birgitte decide ignorar o seu bem-comportado discurso e falar espontaneamente às pessoas – dizendo-lhes a verdade! É um recurso originalíssimo, em nada prejudicado pelo facto de já ter sido usado por outras cinquenta personagens fictícias (em Bulworth, The Majestic, The Adjustment Bureau, Network, dois filmes de Capra, e em praticamente tudo o que Aaron Sorkin escreveu na vida). O expediente é eficaz e traduz-se num inesperado resultado eleitoral, que lhe permite ser ela a tentar formar governo. Birgitte torna-se uma mulher poderosa num mundo de homens, como Lucrécia Borgen.
Borgen foi elogiada pelo seu “realismo” sobre a prática política, suspeita-se que, em parte, por representar um confortável (hygge!) meio-termo entre a logorreia idealista e sentimental de West Wing e o cinismo cómico e militante de Veep ou The Thick of It. Mas o realismo é sempre artifício, e a medida do seu sucesso terá de incluir a qualidade de execução, e não apenas a sua semelhança com a realidade, e Borgen é tão “realista” sobre política como Anatomia de Gray é sobre medicina ou Perry Mason sobre advocacia. A sofisticação dos seus diálogos sobre manobras parlamentares está apenas um desvio-padrão acima do que pode ser encontrado na típica telenovela portuguesa sobre irmãos desavindos a tentar controlar as “acções da empresa”. O mais surpreendente em toda a série é Virgílio Castelo nunca aparecer atrás de uma secretária, dizendo num tom severo “våis pågår cårø este esquemå pårå me røubår øs meus 51%, Bernårdø”.
Borgen partilha com muitas outras séries contemporâneas uma aversão instintiva à estranheza e à inexplicabilidade. Não há qualquer espaço para impulsos erráticos, ilógicos ou desconcertantes. Perante qualquer ameaça, o impulso do guião é classificá-la, domesticá-la e traduzi-la para a linguagem das motivações canónicas televisivas (trauma de infância, tensão familiar, etc.), com causa e efeito reduzidos a uma equação simples. Da mesma forma, relegar a complexidade para as margens interpretativas também é proibido. Perante a possibilidade de qualquer subtexto potencialmente intrigante, a resposta é sentar imediatamente duas personagens num sofá e forçá-las a emitir comunicados uma à outra. Se há uma contradição interessante entre os esforços políticos para modernizar a vida familiar no país e a vida familiar dos políticos que fazem esses esforços, a série vai a correr sublinhar o ponto, pondo o seu mentor a dizer-lhe, literalmente, “é uma contradição interessante que”, etc. No início da segunda temporada, Birgitte enfrenta uma guerra em África e problemas matrimoniais. Antes de o espectador ter tempo sequer para fazer metade do trabalho, já ela está a explicar ao marido: “Sinto-me na guerra no trabalho... e sinto-me na guerra em casa!”
A questão acaba por nem ser de suspensão da descrença, pois a descrença não se limita a ser suspensa: começa a fazer marcha-atrás. Não é que tenhamos dificuldade em acreditar que tais diálogos sejam possíveis; a dificuldade é perceber porque é que foi necessário imaginá-los. É um naturalismo tão desinteressantemente rigoroso que começa a parecer o mapa cuja escala coincide ponto por ponto com o território, como na famosa parábola de Jorge Luis Borgen.
Este determinismo tecnocrata acaba por funcionar como uma tradução para televisionês da superficial visão política que anima o enredo, uma espécie de culto da moderação que não é mais do que um pragmatismo por inércia. Escolhas políticas transformam-se em meras iterações de comportamentos “responsáveis” e a ideia de uma disputa ideológica entre orientações mutuamente exclusivas é substituída pela ideia de política enquanto serena administração de vontades, através do cálculo de uma média estatística. Birgitte enfrenta um problema de um lado, um problema de um outro lado, fica quieta no mesmo sítio, e as coisas vão-se resolvendo, sempre em cinquenta minutos. Depois explica a uma das três pessoas com quem fala o que aconteceu, e essa pessoa explica-lhe o significado do que aconteceu. Nenhuma decisão tem consequências importantes de um episódio para o seguinte. E nenhuma exigência é feita ao espectador, a não ser a de reconhecer o seu próprio conforto, pois Borgen não é boa televisão, nem má televisão; é apenas hygge: meio copo de vinho ao fim do dia, num lugar quentinho, aconchegante e familiar, desprovido de quaisquer atritos ou fricções.
À semelhança de outras séries atuais, em Borgen não há qualquer espaço para impulsos erráticos, ilógicos ou desconcertantes.