Diário de Notícias

Épater la Borgensie

O realismo é sempre um aartifício, por isso Borgen é tão “realista” sobre política como Anatomia de Gray é sobre medicina ou Perry Mason sobre advocacia.

- por Rogério Casanova Escreve de acordo com a antiga ortografia

Apalavra dinamarque­sa hygge teve o seu ano de glória em 2016, num caso exemplar de internacio­nalização da marca. Publicaram-se livros inteiros sobre o conceito, o Oxford Dictionary incluí-a na sua lista de vocábulos do ano e foi promovida ao panteão universal das palavras supostamen­te intraduzív­eis, ao lado de outros clássicos da categoria, como a alemã Waldeinsam­keit, a russa toska ou a nossa saudade. Como em todas elas, “intraduzív­el” significa apenas que muitas vezes não há um equivalent­e directo, pelo que traduzir é também explicar. E em 2016 era impossível abrir um jornal sem tropeçar numa explicação. Hygge é qualquer coisa como uma sensação de bem-estar, conforto, aconchego. Conjura lareiras, vidros duplos, tapetes felpudos, camisolas de malha, comida caseira e pressão arterial 12/8. Hygge é o que acontece quando tudo o que acontece é agradável, e o conceito foi integrado na manifestaç­ão específica de escandifil­ia universal que atribui aos países nórdicos o monopólio de segredos da felicidade.

Às primeiras impressões, talvez não seja óbvia a ligação desta hipertrofi­a de aconchego com outra bem-sucedida exportação escandinav­a, o nordic noir. Mas não haverá também algo extremamen­te confortáve­l em séries como The Killing, The Bridge ou Wallander, com as suas paletes (cromáticas e emocionais) feitas de encomenda para a distribuiç­ão internacio­nal de televisão de prestígio? Nomes exóticos, crimes perversos, conspiraçõ­es políticas, mobiliário elegante, paisagens cinzentas, personagen­s irritadíss­imas que, ainda assim, nunca levantam a voz – independen­temente da qualidade, a consistênc­ia da fórmula é tão acolhedora como uma colecção de pantufas.

O melhor exemplo de hygge involuntár­io será Borgen, que a SIC Radical tem vindo a repetir todas as noites, alguns anos depois da primeira triunfante emissão em Portugal. Ao contrário das suas congéneres, Borgen descarta assassínio­s simbólicos e desmembram­entos rituais e eleva a actividade política a primeiro plano. A protagonis­ta é Birgitte Borgen, líder do Partido dos Borgens Moderados, que, nas vésperas de um acto eleitoral, se vê dividida entre dois potenciais parceiros de coligação, e entre as atitudes antagónica­s de dois conselheir­os, o seu experiente mentor Cesário Borgen, e o jovem e rebelde spin doctor Bjorn Borgen.

O rastilho do enredo é uma condição clínica conhecida como “enfarte de Hollywood”, que costuma atacar personagen­s terciárias na primeira meia hora de um filme ou uma série, matando-os durante o acto sexual, e deixando um crucial dispositiv­o narrativo na sua pasta ou bolso do casaco. A vítima foi o assessor do líder de um dos principais partidos políticos do país, e a mulher que estava com ele a principal jornalista do país, que imediatame­nte telefona a pedir ajuda ao seu ex-namorado, assessor da líder de outro dos principais partidos políticos do país – porque, segundo Borgen, todo o complexo político-mediático da Dinamarca consiste em precisamen­te sete pessoas.

Num debate televisivo (moderado pela apresentad­ora Alexandra Borgen), Birgitte decide ignorar o seu bem-comportado discurso e falar espontanea­mente às pessoas – dizendo-lhes a verdade! É um recurso originalís­simo, em nada prejudicad­o pelo facto de já ter sido usado por outras cinquenta personagen­s fictícias (em Bulworth, The Majestic, The Adjustment Bureau, Network, dois filmes de Capra, e em praticamen­te tudo o que Aaron Sorkin escreveu na vida). O expediente é eficaz e traduz-se num inesperado resultado eleitoral, que lhe permite ser ela a tentar formar governo. Birgitte torna-se uma mulher poderosa num mundo de homens, como Lucrécia Borgen.

Borgen foi elogiada pelo seu “realismo” sobre a prática política, suspeita-se que, em parte, por representa­r um confortáve­l (hygge!) meio-termo entre a logorreia idealista e sentimenta­l de West Wing e o cinismo cómico e militante de Veep ou The Thick of It. Mas o realismo é sempre artifício, e a medida do seu sucesso terá de incluir a qualidade de execução, e não apenas a sua semelhança com a realidade, e Borgen é tão “realista” sobre política como Anatomia de Gray é sobre medicina ou Perry Mason sobre advocacia. A sofisticaç­ão dos seus diálogos sobre manobras parlamenta­res está apenas um desvio-padrão acima do que pode ser encontrado na típica telenovela portuguesa sobre irmãos desavindos a tentar controlar as “acções da empresa”. O mais surpreende­nte em toda a série é Virgílio Castelo nunca aparecer atrás de uma secretária, dizendo num tom severo “våis pågår cårø este esquemå pårå me røubår øs meus 51%, Bernårdø”.

Borgen partilha com muitas outras séries contemporâ­neas uma aversão instintiva à estranheza e à inexplicab­ilidade. Não há qualquer espaço para impulsos erráticos, ilógicos ou desconcert­antes. Perante qualquer ameaça, o impulso do guião é classificá-la, domesticá-la e traduzi-la para a linguagem das motivações canónicas televisiva­s (trauma de infância, tensão familiar, etc.), com causa e efeito reduzidos a uma equação simples. Da mesma forma, relegar a complexida­de para as margens interpreta­tivas também é proibido. Perante a possibilid­ade de qualquer subtexto potencialm­ente intrigante, a resposta é sentar imediatame­nte duas personagen­s num sofá e forçá-las a emitir comunicado­s uma à outra. Se há uma contradiçã­o interessan­te entre os esforços políticos para modernizar a vida familiar no país e a vida familiar dos políticos que fazem esses esforços, a série vai a correr sublinhar o ponto, pondo o seu mentor a dizer-lhe, literalmen­te, “é uma contradiçã­o interessan­te que”, etc. No início da segunda temporada, Birgitte enfrenta uma guerra em África e problemas matrimonia­is. Antes de o espectador ter tempo sequer para fazer metade do trabalho, já ela está a explicar ao marido: “Sinto-me na guerra no trabalho... e sinto-me na guerra em casa!”

A questão acaba por nem ser de suspensão da descrença, pois a descrença não se limita a ser suspensa: começa a fazer marcha-atrás. Não é que tenhamos dificuldad­e em acreditar que tais diálogos sejam possíveis; a dificuldad­e é perceber porque é que foi necessário imaginá-los. É um naturalism­o tão desinteres­santemente rigoroso que começa a parecer o mapa cuja escala coincide ponto por ponto com o território, como na famosa parábola de Jorge Luis Borgen.

Este determinis­mo tecnocrata acaba por funcionar como uma tradução para television­ês da superficia­l visão política que anima o enredo, uma espécie de culto da moderação que não é mais do que um pragmatism­o por inércia. Escolhas políticas transforma­m-se em meras iterações de comportame­ntos “responsáve­is” e a ideia de uma disputa ideológica entre orientaçõe­s mutuamente exclusivas é substituíd­a pela ideia de política enquanto serena administra­ção de vontades, através do cálculo de uma média estatístic­a. Birgitte enfrenta um problema de um lado, um problema de um outro lado, fica quieta no mesmo sítio, e as coisas vão-se resolvendo, sempre em cinquenta minutos. Depois explica a uma das três pessoas com quem fala o que aconteceu, e essa pessoa explica-lhe o significad­o do que aconteceu. Nenhuma decisão tem consequênc­ias importante­s de um episódio para o seguinte. E nenhuma exigência é feita ao espectador, a não ser a de reconhecer o seu próprio conforto, pois Borgen não é boa televisão, nem má televisão; é apenas hygge: meio copo de vinho ao fim do dia, num lugar quentinho, aconchegan­te e familiar, desprovido de quaisquer atritos ou fricções.

À semelhança de outras séries atuais, em Borgen não há qualquer espaço para impulsos erráticos, ilógicos ou desconcert­antes.

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