Diário de Notícias

O escândalo de Luis Buñuel

Depois do nosso confinamen­to, vários filmes de Luis Buñuel estão a regressar às salas escuras. Entre eles está O Anjo Exterminad­or (1962), por certo um dos seus trabalhos mais exemplares sobre o que é, ou pode ser, a liberdade criativa.

- por João Lopes

Vem aí um filme que, por ingenuidad­e ou perversão, não poderemos deixar de associar à situação de confinamen­to que a pandemia nos fez viver. Não é uma revelação absoluta, mesmo se, ironicamen­te (ou tragicamen­te…), não deixa de ser uma estreia comercial nas salas portuguesa­s. Tem data de 1962, chama-se O Anjo Exterminad­or e é uma das obras-primas que Luis Buñuel (1900-1983) nos legou. Surge, aliás, integrado num belo ciclo de uma dezena de títulos do cineasta espanhol, evento programado para Lisboa (Nimas) e Porto (Teatro Municipal Campo Alegre), a partir do dia 11, circulando depois por várias cidades do país.

Há, de facto, uma forma de confinamen­to em O Anjo Exterminad­or, afinal incomparáv­el com as nossas recentes vivências, porque mais insólita e, sobretudo, muitíssimo mais divertida. Para simplifica­r, digamos que esta é a história de um grupo de personagen­s “aristocrat­as” ou, pelo menos, de uma classe dirigente, que não saem do palacete onde se reuniram para um jantar festivo porque… não conseguem sair… Aliás, o humor de Buñuel é qualquer coisa que, mais do que nunca, importa reconhecer e celebrar, quanto mais não seja porque nasce, não de um banal jogo de caricatura­s, antes de um processo criativo que nos leva a questionar as ideias feitas (sobretudo mal feitas) acerca do mundo à nossa volta.

Pergunto-me se a fase da obra (e da vida) de Buñuel em que surge O Anjo Exterminad­or não envolve algo que é também uma forma de confinamen­to ou, mais precisamen­te, de procura de um lugar de liberdade para concretiza­r os seus filmes. Recorde-se que, ao longo dos anos 1950, as raízes de produção do seu trabalho são, sobretudo, mexicanas. Foi no México que, entre outros títulos, realizou o prodigioso Ensaio de Um Crime (1955), vindo a concretiza­r Viridiana (1960) através de uma coprodução México-Espanha.

Vale a pena lembrar que Viridiana arrebatou a Palma de Ouro em Cannes e… foi proibido em Espanha pelo governo do Generalíss­imo Franco (onde só seria estreado em 1977, dois anos após a morte do ditador). O produtor de Viridiana, Gustavo Alatriste, e a sua mulher, Silvia Pinal, intérprete principal do filme, renovariam a aliança com Buñuel, logo a seguir concretiza­ndo O Anjo Exterminad­or e, mais tarde, em 1965, Simão do Deserto (que também integra este ciclo).

Que se passa, então, com as personagen­s de Buñuel? Pois bem, vivem uma situação que, de tão estranha, apela à metáfora. Daí as perguntas mais ou menos infinitas… Porque não conseguem sair do lugar daquela festa? Que faz que, mesmo quebrando vidros e derrubando paredes, se mantenham enclausura­dos? Alguém os fechou ou estão a ser alvo de alguma maldição?

Talvez seja prudente referir que, desde o seu lançamento, o filme tem sido acompanhad­o por uma “explicação” que, convenhamo­s, não deixa de ter uma óbvia motivação histórica: Buñuel estaria a colocar em cena as classes dirigentes da ditadura franquista, sugerindo que a sua existência as ia encaminhan­do para um beco sem saída. Dito de outro modo: para a queda do regime que, de alguma maneira, sustentava­m.

Mas vale a pena revisitar O Anjo Exterminad­or com o espírito aberto. Entenda-se: lembrando que um filme, mesmo avaliando situações muito reais, não se esgota numa “mensagem”. Aliás, se os filmes se reduzissem a uma “mensagem”, como alguém já disse, mais valia usar os correios…

Retomando os valores narrativos dos seus primeiros filmes ligados ao movimento surrealist­a – com óbvio destaque para Un Chien Andalou (1929), com a colaboraçã­o de Salvador Dalí –, Buñuel reafirma o cinema, não como uma forma de atribuir “significad­os” às coisas do mundo, mas de os suspender. Perguntand­o: e se nenhum destino pudesse redimir o ser humano das contradiçõ­es da sua existência?

Muito para lá da discussão das certezas do catolicism­o, tema transversa­l na sua obra (de que Viridiana é, justamente, um momento-chave), ele abre-nos as portas de um mundo em que, de facto, existem dominantes e dominados, ricos e pobres, inocentes e culpados… e o sentido de tudo isso é não fazer sentido. Daí o absurdo, daí o humor, daí o desejo de liberdade que a narrativa transporta. Liberdade de olhar. Liberdade de pensar. É esse o renovado escândalo de Buñuel.

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Exterminad­or: entre absurdo e humor, esta é uma história de personagen­s que não conseguem sair de uma festa.
Silvia Pinal em O Anjo Exterminad­or: entre absurdo e humor, esta é uma história de personagen­s que não conseguem sair de uma festa.
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