Uma educação sentimental (4)
Evelyn Waugh casou-se com Laura Herbert em Londres, em Abril de 1937. A sua amiga de sempre, Maimie Lygon, esteve presente, naturalmente. E, em 1939, seria a sua vez de se casar, com um exilado russo, Vsevolod Ivanovich, sobrinho do último czar, cuja família escapara dos bolcheviques quando ele ainda era criança. Venderam as pratas, o jovem Vsev estudou em Eton e em Oxford, mas, para ganhar a vida, teve de passar a fazer algo impensável na sua família: trabalhar. O sobrinho do czar das Rússias tornou-se vendedor de lubrificantes industriais no norte de Londres, onde era conhecido por Mr. Romanoff. Pelo casamento, Maimie tornar-se-ia a princesa Romanovsky-Pavlovsky.
Em 1938,Waugh teve o primeiro filho, o primeiro de sete. Uma menina, Maria Teresa, e, no ano seguinte, um rapaz, Auberon Alexander, que iria notabilizar-se como jornalista e, mais moderadamente, como escritor. Maimie Lygon seria madrinha de baptismo de Auberon, mais uma prova do afecto profundo que Evelyn lhe dedicava.
Depois veio a guerra. Madresfield Court era agora propriedade do primogénito, William “Elmley” Lygon, oitavo conde de Beauchamp, conhecido vulgarmente como visconde Elmey. À semelhança do que ocorre em Brideshead Revisited/Reviver o Passado em Brideshead, a casa senhorial dos Lygon foi requisitada pelo Exército, mas, ao contrário do que acontece na novela deWaugh (e na série com o mesmo título), em que a passagem das tropas provoca sérios estragos no edifício e na propriedade envolvente, Madresfield Court permaneceu intacta. A razão é simples, ainda que na altura secreta: se acaso as princesas reais tivessem de fugir de Londres, Madresfield estava destinada a ser o seu refúgio. No quarto em que pensavam acomodar as princesas, Elmley e a sua mulher, Else “Mona” Shiwe, pousaram, na cabeceira de cada cama, um livro apropriado para as respectivas idades, decerto obras castíssimas, prenhes de virtudes e ensinamentos morais. Mas à medida que a guerra prosseguia e as princesas cresciam, os títulos foram sendo alterados, suavemente. Todos os anos, Elmley e Mona punham livros novos no quarto preparado para receber as duas filhas do rei em guerra.
Enquanto isso, Vsevolod Ivanovich abandonou o comércio de lubrificantes e tornou-se vendedor de vinhos e, às noites, vigilante aéreo. Ele, Maimie e Evelyn começaram a beber em excesso. MasVsev (que Waugh odiava) e sobretudo Maimie bebiam de forma diferente. Como, em Brideshead Revisited, Sebastian Flyte bebia de forma diferente de Charles Ryder. Laura Waugh e os filhos estavam longe de Londres, por segurança, e ele, Maimie eVsev decidiram partilhar um pequeno apartamento em South Kensington. Mas, como é frequente nestes confinamentos forçados, os atritos eram diários e as discussões constantes, por vezes violentas. Numa noite, falando a sós com Maimie, e já bastante toldado pelo álcool, Evelyn disse-lhe, com o ar mais sério do mundo, que o seu marido era um espião a soldo do inimigo…
Por essa altura, Waugh soube que Hubert Duggan, o seu grande amigo – e antigo amante de Maimie –, estava a morrer, vítima de tuberculose. Duggan renunciara à fé católica, mas, no leito de morte, recomeçara a falar de religião e de Deus, ainda que insistisse que não queria converter-se. Waugh, que já na altura era um católico devoto, tudo fez para que a graça divina inspirasse o amigo moribundo. Nos derradeiros momentos, um padre deu a extrema-unção a Hubert Duggan, e este, surpreendentemente, fez o sinal da cruz e benzeu-se, em sinal de assentimento. Morreu instantes depois. Celebrou-se um réquiem, a que Evelyn assistiu na companhia de Maimie. Vsev não compareceu.
A morte de Duggan foi das experiências mais marcantes da vida de EvelynWaugh, e a impressão causada por aquela conversão in extremis, ou que pareceu sê-lo, teve um impacto profundo – e directo – na sua obra. Toda a cena da conversão final de Lord Marchmain em Brideshead Revisited, que Evelyn escreveu afanosamente no Dia D, até às quatro da madrugada, enquanto os Aliados desembarcavam nas praias da Normandia, segue quase pari passu o que ele presenciara no leito de morte de Hubert Duggan. Diz-se mesmo que a novela foi escrita por causa do sucedido com o seu amigo – e que essa é a chave interpretativa de Brideshead Revisited, capaz de decifrar todos os enigmas da história de uma família.
Por não suportar maisVsev (the russian’s intolerable, como se lhe referia), Evelyn
Waugh acabaria por se afastar de Maimie Lygon. Confessou mesmo ao seu diário: “I find my dislike ofVsevolode so overwhelming that I cannot sit in the room with him… Maimie is lost to me.” Não era inteiramente verdade. Além de manterem o contacto, Maimie não estava, de modo algum, perdida para ele. Pelo contrário, ela seria a principal fonte de inspiração para a personagem de Julia Flyte no livro que EvelynWaugh escreveu quando estava no Exército, The Household of Faith , mais tarde publicado com o título Brideshead Revisited. Enquanto o escrevia, considerava que aquela seria a sua opus magnum e teve o cuidado de avisar uma das irmãs Lygon de que o conteúdo apresentava semelhanças com a história trágica do patriarca Beauchamp e de Madresfield Court, mas que, na realidade, a obra não era sobre eles. A eterna ilusão, eu não sou eu, I am not I.
Regressado ao Exército, após a licença que lhe fora dada para escrever o seu livro, EvelynWaugh foi enviado para a frente da Jugoslávia, tendo Randolph Churchill por camarada de armas (ou, mais precisamente, como comandante). Combatia, pois, ao lado do filho do primeiro-ministro. As provas tipográficas de Brideshead Revisited foram revistas na frente de combate, sendo remetidas do n.º 10 de Downing Street e viajando, nos dois sentidos, na mala de correio destinada aWinston Churchill.
O livro, como muitos notaram logo na altura, tem uma óbvia e estridente ligação aos Lygon de Madresfield. Waugh mandou cópias às irmãs Lygon, uma das quais sublinhou veladamente, mas em tom reprovador, essa ligação. O livro é também um dos mais autobiográficos da obra de Waugh, eivado de referências pessoais: o afastamento progressivo relativamente à figura paterna, a educação sentimental em Oxford, a entrada temerosa nos círculos aristocráticos, a conversão de Hubert Duggan no leito de morte.
Julia Flyte foi, de longe, a personagem que lhe criou mais problemas de concepção, aquela que apresenta menor densidade psicológica ou emocional. Waugh torturava-se com a questão de saber se ela amava realmente Charles Ryder. Se o não amasse, o livro tinha falhado – como Evelyn dirá à escritora e sua amiga Nancy Mitford. Na verdade, Charles ama Sebastian e, depois, a sua irmã, Julia. Daí que já se tenha dito que Brideshead Revisited, mais do que um livro que aborda a homossexualidade, é uma novela que eleva a imaginação bissexual ao seu máximo esplendor. Ou, talvez mais rigorosamente, uma novela que atravessa as sucessivas fases do percurso afectivo e erótico do protagonista principal, o capitão Charles Ryder, e do próprio autor.
No pós-guerra, Waugh conheceu enorme sucesso, sobretudo nos Estados Unidos, e, desde então, Brideshead Revisited tornou-se um livro de culto. Pensou-se até numa adaptação ao cinema, para a qual o escritor chegou a redigir uma espécie de guião, procurando a todo o custo que “os selvagens da Califórnia”, como lhes chamava, não estragassem a sua obra e aquilo que ele considerava ser a sua questão fulcral, absolutamente decisiva, a fé religiosa e graça divina. Por exemplo, para Waugh era fundamental que Julia, divorciada de Rex Mottram, não pudesse casar-se de imediato com Charles, e até mesmo que não fosse feliz com ele. Ao divorciar-se, pecara; e, por isso, deveria expiar a sua culpa. Waugh rejeitava em absoluto “a banal Hollywood ending”, em que Charles e Julia se casassem e fossem felizes para sempre. Havendo pecado, haveria que pagá-lo – como, aliás, Lord Beauchamp pagara pelos seus delitos homossexuais.
É nesta fase que, em 1945, Pio XII concede uma audiência a Waugh e em que o escritor expõe ao Papa a dramática situação dos croatas após o domínio de Tito. Por causa disso, odiaria Tito para sempre e, obviamente, juntou-se aos católicos e aos conservadores que, em 1952, contestaram a anunciada visita do marechal a Inglaterra. Nesse mesmo ano, Waugh viajou até Goa, que o fascinou pela presença euro
peia e a marca da fé cristã (como é evidente, não só não questionou o domínio colonial português como se mostrou seu apoiante e admirador de Salazar). Crítico do Concílio Vaticano II, será sempre um católico rigoroso, apegado a ritos e tradições, e às convenções da fé, como geralmente é timbre dos convertidos.
Mas os que ainda hoje lhe apontam, e talvez com uma ponta de razão, o seu deslumbramento pelas honras e pela aristocracia devem ter presente um facto singular: em 1959,Waugh recusou a distinção de Commander of the British Empire. Aliás, se em Brideshead perpassa uma atracção nostálgica pelo mundo desaparecido da velha nobreza, o certo é que alguns membros dessa elite, porventura os mais representativos e emblemáticos, como Boy Mulcaster ou Bridey, o primogénito dos Marchmain, são retratados de forma bastante mordaz e crítica.Waugh, eternamente ambíguo.
A amizade com Maimie Lygon será restaurada – em boa verdade, nunca esteve em causa, nem sequer foi interrompida. Recomeçaram conversas antigas, em que o tema da sexualidade – e da homossexualidade, em particular – sempre foi falado sem preconceitos, com a tolerância que Boom ensinara aos filhos. Em 1955, Maimie atravessou um período de grande deterioração psíquica, o que apavorou o seu velho amigo e cúmplice. “To know and love one human being is the root of all wisdom”, dirá Charles Ryder, numa das mais conhecidas passagens de Brideshead Revisited. Evelyn Waugh e Maimie Lygon nunca estiveram apaixonados um pelo outro e jamais foram amantes. Amavam-se, sem dúvida, mas de uma outra forma, aquela que é a raiz de toda a sabedoria, the root of all wisdom.
No final da vida, Maimie desmentiu categoricamente que alguma vez tivesse sido amante deWaugh e negou que ela fosse a encarnação viva da Julia Flyte de Brideshead Revisited. De facto, não era, mas existem vários traços seus na principal personagem feminina da novela, cuja “magical sadness” atrai Charles Ryder de forma irresistível. Como Sebastian, Julia Flyte é uma personagem compósita, que tem traços de Maimie Lygon, outros de duas mulheres marcantes na vida do escritor: a socialite Teresa Jungman, por quem esteve perdidamente apaixonado, e Olivia Plunket-Greene, uma grande amiga sua, que se convertera ao catolicismo em 1925 e o convencera a tomar o mesmo caminho.
Há quem afirme, acertadamente ou não, que a estrutura narrativa impôs queWaugh apresentasse Charles Ryder e Julia Flyte como amantes efémeros, quando teria sido preferível levar a analogia com Maimie às últimas consequências e mostrá-los, quando muito, como amigos ou namorados platónicos. Simplesmente, teria sido extremamente difícil, ou mesmo impossível, retratar num escrito a densidade da relação entreWaugh e Maimie. Descrevê-los como amantes não será verdade, mas falar tão-só de uma “deep friendship”, como Maimie a qualificou, ficará aquém, muito aquém, do que ambos foram um para o noutro ao longo de décadas.
É sintomático, por exemplo, queWaugh tenha sentido uma necessidade imensa – diríamos, uma necessidade amorosa – de salvar a alma de Maimie quando esta lhe comunica, em 1959, que perdera a fé. Maimie divorciara-se três anos antes. Depois da guerra, ela eVsev entraram numa espiral de alcoolismo e depressão de que nunca conseguiram libertar-se. Sem filhos, viviam praticamente sós, na companhia dos seus cães pequineses. As discussões conjugais tornaram-se frequentes e cada vez mais violentas e, às tantas, chegaram a atirar chaleiras com água a ferver um ao outro.
Sob o título de princesa Romanovsky-Pavlovsky, Maimie foi editora de uma revista literária, a Diversion, destinada a apoiar aYugoslav Relief Society, e, mais tarde, trabalhou num salão de antiguidades em King’s Road. Em 1952, Evelyn Waugh, consternado, informou Nancy Mitford de que Maimie Lygon tinha entrado na falência. Começou a vender as jóias que lhe restavam, os bancos recusavam-se a descontar os cheques que emitia. Depois, enfrentou sérios distúrbios mentais e teve mesmo de ser internada numa casa de repouso em Londres. Após o divórcio,Vsev rapidamente se casou com a sua amante, Emilia de Gosztonyi, uma húngara de quem se divorciará para se casar de novo.
Nesta fase,Waugh demonstrou seguir o que repetidamente dizia a Auberon, o seu filho mais velho: “Most of the interest and amusement in life comes from one’s friends.” Apoiou de imediato a sua amiga, quer financeira quer afectivamente, tendo chegado a mandar a sua filha Meg, de quem Maimie muito gostava, visitá-la com regularidade. Em 1981, Maimie foi entrevistada quando da transmissão da série Brideshead Revisited, da Granada Television. Na altura com 71 anos, morava numa pequena casa num subúrbio de Londres. Na emissão televisiva, vê-se a casa caótica e suja, e Maimie a servir continuamente doces de vodca, apesar de ser meio da tarde.
Mary “Maimie” Lygon morreu de cancro em Setembro de 1982. Evelyn Waugh falecera muitos anos antes, em 1966, com a saúde arruinada pelo álcool, pelo tabaco e pelo consumo imoderado de soníferos. Uma morte singular que decerto teria apreciado: depois de ouvir a missa em latim, ao seu gosto pré-conciliar, foi fulminado por um ataque cardíaco. Era Domingo de Páscoa.
Elmley, o primogénito da família Lygon, morreu em 1979, após uma vida obscura, passada entre os veludos da Câmara dos Lordes e os salões de Madresfield Court. A sua mulher, Mona, que morreria dez anos depois, tentou transformar Halkyn Housea, a casa de Londres dos Lygon, num edifício de apartamentos, mas as autoridades não o permitiram. Halkyn House acabou por ser vendida à embaixada da Síria e é hoje a sede da representação diplomática do Gana na capital britânica, no n.º 13 de Belgrave Square, mesmo ao lado da Embaixada de Portugal em Londres.
Da descendência de Lord Beauchamp, Elmley, Hugh e as quatro irmãs não tiveram filhos. Apenas Richard, o mais novo da família, seria pai, mas de duas raparigas, uma das quais, Lady Rosalind Morrison, é a actual proprietária de Madresfield Court. O título nobiliárquico de Beauchamp encontra-se actualmente extinto.
Em Madresfield Court, havia uma estação de comboio. Em várias ocasiões, Maimie Lygon foi aí buscar Evelyn Waugh, trazendo-o de automóvel até à casa antiga, exactamente como da primeira vez em que Julia Flyte e Charles Ryder se encontraram. I am not I, eu não sou eu.
Nos jardins de Madresfield Court, um relógio de sol tinha a seguinte inscrição no bronze, concebida por Lord Beauchamp: “That day is wasted on which we have not laughed.”
Por brincadeira pueril ou ritual de fé, Evelyn Waugh e as irmãs Lygon adoptariam essa frase como lema das suas vidas. E assim as passaram, até morrerem.
Teria sido difícil retratar a densidade da relação entre Waugh e Maimie. Não eram amantes nem apenas bons amigos.
Foi há algum tempo, antes de a pandemia tomar conta do noticiário. A Sotheby’s, casa de leilões em Nova Iorque, ao leiloar os bens do falecido Duque de Windsor, conseguiu arrancar a enormidade de quinhentos mil dólares por um pedaço de bolo de casamento. Não, você não leu errado. Mas não era um bolo comum, e também não era um casamento comum. Era simplesmente o bolo do notório casamento do Duque de Windsor com Wallis Simpson, que custou ao noivo nada menos do que um trono – o da Inglaterra. Detalhe: o leilão foi outro dia, mas o casamento, com bolo, champanhe e petiscos, foi, como se sabe, em 1937.
Os compradores do pedaço de bolo foram um casal de jovens americanos de origem chinesa, Benjamin e Aman Yin. Não é romântico? Muito. Principalmente porque o casalzinho arrematou o dito pedaço de bolo no escuro, ou seja, sem o ver. O objeto estava guardado numa caixa lacrada que, por algum motivo, não podia ser aberta durante o leilão. A Sotheby’s deu a sua palavra de que ali havia um pedaço de bolo – e quem vai duvidar da palavra da Sotheby’s? –, mas só não podia jurar pelo seu estado. Talvez ainda estivesse sólido, até petrificado, mas poderia também ter virado farelo e a caixa abrigasse uma gorda colónia de fungos, todos com o colesterol nas alturas. Quem o arrematasse teria de confiar na garantia da Sotheby’s, de que, um dia, o casal mais famoso de sua época comera daquele bolo e que a caixa continha o que restara dele.
Algumas considerações. É evidente que, ao ver sobrar um pedaço de bolo do seu falado casamento, o casal Simpson-Windsor não iria levá-lo para a lua-de-mel. E nem aquele foi o único bolo da receção, mas um dos muitos que foram servidos aos convidados. Ao ver que um deles não tinha sido consumido por inteiro, algum funcionário da cozinha ou do protocolo o guardara, como um souvenir daquele momento histórico – e, quase um século depois, ele ressuscitaria na maior casa de leilões do mundo.
Para a Sotheby’s, que não esperava arrecadar mais do que reles cinco mil dólares por aquele lote, foi uma surpresa. Os lances começaram a se suceder e, quando chegaram a quinhentos mil dólares, os outros concorrentes desistiram e o casal chinês levou o troféu.
Fico imaginando o histórico desses jovens compradores. Deviam estar muito apaixonados. A garota certamente era de família aristocrática, descendente de alguma dinastia chinesa do ano 3000 a.C., que, nesses séculos todos, perdeu tudo, ficou pobre e conservou somente o nome ilustre. Já o rapaz devia ser um deslumbrado emergente social, cujo pai começou como tintureiro na Chinatown de Nova Iorque e, depois, se tornou um polvo da pirataria eletrónica em Pequim. Para impressionar a rapariga e provar que tinha classe e elegância, o moço prometeu-lhe um presente de casamento à altura das tradições da nobreza ocidental. E que melhor nobreza, apesar dos pesares, do que a inglesa?
Ao saber que a Sotheby’s ia leiloar objetos do lendário Duque de Windsor, ele não hesitou. Desprezou as outras ofertas do leilão, como uma escrivaninha Luís XV que pertencera ao próprio Luís XV, armaduras atribuídas a Joana d’Arc e as dentaduras postiças de George Washington, e concentrou-se no que lhe parecia mais romântico: um pedaço do bolo do casamento que a Família Real inglesa tentou proibir.
Afinal, era uma relíquia da maior história de amor do século XX: a do príncipe Eduardo VIII – sim, filho de Eduardo VII –, que abdicou da coroa da Inglaterra por uma plebeia conhecida internacionalmente pela vida airosa, ainda por cima divorciada, e, como se não bastasse, americana. Pois, para se casar com essa mulher, detestada pela Família Real, Eduardo VIII largou tudo para trás e partiu para o exílio com um reles título de Duque. Não importa que ele só tenha se casado com Wallis porque, segundo dizem, ela era a única mulher com quem ele conseguia mais ou menos funcionar. O importante foi o gesto – e que objeto pode simbolizar melhor esse gesto do que o bolo cortado pelos dois amantes, com suas mãos trémulas de champanhe e paixão?
Sim, eu sei, você deve estar a se perguntar: será possível a um bolo se conservar durante tantas décadas? Afinal, ele saíra do forno havia mais de oitenta anos! Um bolo, mesmo um bolo real e confecionado para um casamento tão sublime, é feito com os mesmos ovos, leite, farinha, manteiga, fermento, açúcar e baunilha dos casamentos plebeus e sem amor. Todos esses elementos são miseravelmente perecíveis e, por mais que alguns ingleses sejam mestres em confeitaria, é difícil de acreditar que, tanto tempo depois, não se tenha transformado numa múmia de bolo. A favor do bolo, diga-se que o Duque e a Duquesa não envelheceram muito melhor.
Bem, o jovem casalzinho chinês arrematou a preciosidade, pagou à vista e levou para casa a caixa com o hipotético pedaço de bolo. As agências de notícias não informaram se a caixa foi aberta ali mesmo, ao fim do leilão, diante de um bando de gente compreensivelmente curiosa. O mais provável é que o casalzinho tenha reservado a abertura para um momento solene no seu próprio lar. Pois, se foi assim, só há duas hipóteses.
Primeiro: o bolo estava intacto e, nesse caso, o amor é lindo. Segunda: os fungos já tinham comido todo o bolo, do qual não restou nem um grão, mas o casal jamais dará a satisfação de admitir que seu sonho se frustrou.
E, mesmo nesse caso, o amor também será lindo.