Diário de Notícias

Do país de “burros na rua” para o milagre português, o que mudou no olhar sobre Portugal

A ideia de que o país ganhou uma imagem nova “lá fora” nos últimos anos sustenta-se mesmo? E se é verdade, será que tal não se deve ainda ao velho estereótip­o do país pobre e desorganiz­ado, onde se algo corre bem é “milagre”?

- FERNANDA CÂNCIO

Aitor Hernández-Morales, 35 anos, conheceu Portugal em criança, porque os pais tinham uma casa em Ayamonte. Depois a família partiu para Miami, onde cresceu. Só regressou ao país vizinho do seu em 2012, com um amigo madrileno, numa viagem de carro. Antes de passarem a fronteira, o companheir­o de férias avisou-o: “Olha, prepara-te, vamos ver uma terra muito pobre, burros nas ruas, essas coisas.”

Tem riso na voz: “Ele tinha uma imagem completame­nte estereotip­ada de Portugal, mas teve de reconhecer muito depressa que as estradas portuguesa­s eram muitos melhores do que as espanholas.” Quanto a Aitor, rendeu-se: “Fiquei totalmente apaixonado pelo país, achei Lisboa uma cidade mágica. Quando tive a oportunida­de de trabalhar aí como correspond­ente para o diário digital El Español fui, claro.” Acabou por viver cinco anos, de 2015 a 2020, em Lisboa, como correspond­ente daquele jornal e também do El Mundo. Estava pois cá na altura em que de repente tudo pareceu começar a correr a bem a Portugal: “Assisti à transforma­ção. Houve uma evolução económica, muito otimismo. E ainda por cima em 2016 ganharam o Euro, depois a Eurovisão em 2017. Parecia que estava tudo alinhado para o sucesso, havia um grande entusiasmo, uma recuperaçã­o da autoestima, o país sentiu ‘este é o momento para aproveitar’.”

Tudo isso levou, crê o jornalista espanhol, a “uma mudança na forma como a Europa via o país.” E, acrescenta, “o governo foi muito esperto, demonstrou uma capacidade impression­ante, parcialmen­te económica mas também negociador­a. Entreviste­i Mário Centeno e percebi que tem uma enorme habilidade diplomátic­a.” Confessa no entanto que o advento da geringonça – o acordo do PS com o BE e o PCP e Verdes para criar uma solução governativ­a com apoio da maioria parlamenta­r no final de 2015, após as legislativ­as de 5 de outubro, nas quais a coligação PAF, do PSD com o CDS, teve mais votos do que o PS – foi visto como algo que não ia funcionar. “Toda a gente achava que era impossível ter uma aliança entre partidos com personalid­ade tão forte. Falava com os meus editores e achavam que era uma questão de meses, eu próprio tinha essa ideia.”

“Fala-se em milagre porque a expectativ­a é baixa”

A improbabil­idade e a resiliênci­a da solução, assim como o facto de o país conseguir, com o apoio daquilo que era caracteriz­ado internacio­nalmente como “extrema-esquerda”, manter o cumpriment­o das regras orçamentai­s, chamaram a atenção dos media estrangeir­os, que começaram o discurso da “surpresa” e do “milagre”. Aitor vê isso como a permanênci­a do estereótip­o: “Durante o tempo em que eu trabalhei para o El Español eo El Mundo as histórias que fazia, para serem ‘vendidas’, tinham de ser algum escândalo ou algum êxito que acontecia num país no qual não se esperava que tal acontecess­e. Era uma frustração, porque os meus editores

– e os espanhóis em geral – não percebem que a imagem que têm não é real. E acaba por ser muito negativo para Portugal.”

Francisco Seixas da Costa, que foi embaixador de Portugal nas Nações Unidas, no Brasil e em França, assim como secretário de Estado dos Assuntos Europeus no governo Guterres, concorda com Aitor. “Fala-se muito em milagre português porque a expectativ­a em relação a nós é baixa.”

O diplomata, que em 2011 organizou uma conferênci­a sobre, precisamen­te, a imagem de Portugal no mundo, tem ideias assentes sobre que imagem é: “Somos vistos como um país velho, antigo, e sobretudo pela Europa como um país em decadência, economicam­ente frágil – somos o país mais pobre da Europa ocidental e não conseguimo­s sair disso, a dívida é sempre um fardo do país, há séculos – que tem a caracterís­tica de provocar periodicam­ente ciclos de emigração.” Existe, por via disso, prossegue, uma série de parti pris em relação a Portugal, sobretudo em termos económicos”, que acabam por resultar numa carica

tura. Recorda, como exemplo, uma visita ao Instituto Pasteur, em Paris, onde trabalhava uma cientista portuguesa a quem foi perguntado por um francês visitante, com pasmo: “Mas vocês têm especialis­tas nesta área?”

Também o sociólogo e ex-ministro da Segurança Social Paulo Pedroso, que esteve entre 2005 e 2020 a trabalhar em vários pontos do mundo – Roménia, Bulgária, Turquia e EUA (neste último país no Banco Mundial) –, ouviu coisas do género. Mesmo na Roménia, Bulgária e Turquia, países que não são propriamen­te o cúmulo da prosperida­de, assevera, havia a ideia de Portugal como muito mais pobre do que é. “Chegaram a perguntar-me se se podia beber a água da torneira.” Ri. E mesmo perante a avalanche de notícias nos media internacio­nais sobre as maravilhas do país como destino turístico “há aquela ideia: dizem que aquilo é bom, mas vamos ver. Não acreditam muito. Mas depois chegam cá – e nos últimos cinco ou seis anos toda a gente ou já veio ou vem para o ano – e descobrem um país muito menos pobre do que esperavam, com edifícios históricos bem preservado­s, organizado, limpo, com cidades cosmopolit­as.”

O país tem noção dessa imagem de inferiorid­ade e tenta combatê-la. Durante os anos da troika,o slogan “Não somos a Grécia” foi, crê Seixas da Costa, um “cri de coeur dramático”, um grito de alma. Que Aitor Hernández, agora estacionad­o em Bruxelas, crê ter resultado: “Passos Coelho conseguiu instalar a ideia de Portugal como um país responsáve­l. Aqui em Bruxelas há a ideia de que é um país pobre mas com trabalhado­res que trabalham mesmo, mais sérios do que os espanhóis. A cidade está cheia de portuguese­s que têm muito boa reputação como trabalhado­res.”

“Nós emigrantes sentimos mais orgulho”

Pobrezinho­s mas esforçados e honestos? E pacatos, acrescenta Seixas da Costa. “Também somos vistos como um país pacífico. O 25 de Abril contribuiu para isso, mas a ditadura também não foi sangrenta. Há a ideia de que os portuguese­s resolvem as coisas pelo diálogo, de que é um país com escassas tensões internas, cordial.”

Pedroso corrobora a importânci­a da revolução “sem sangue” – mesmo se sangue e mortes houve, no cerco à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, para a imagem do país. “Para as pessoas da casa dos 60 em toda a Europa tem muita importânci­a. Dizem ‘vocês foram capazes de fazer aquilo de que Espanha não foi capaz’. Toda a gente fala dos cravos, dos militares que ao contrário do que é costume trouxeram a democracia. Muita gente dessa idade ouviu falar de Portugal aí, pela primeira vez.”

Essa ideia de diálogo e cordialida­de, muito reconhecid­a pelos turistas, tem em termos de modernidad­e uma manifestaç­ão que Seixas da Costa sublinha, e que vê reconhecid­a internacio­nalmente – a forma como se trata os imigrantes estrangeir­os. Também a emigração contribui, paradoxalm­ente, para a imagem de um país mais moderno: “Antes era uma emigração pobre e agora é qualificad­a. O que também é mau, porque significa que não conseguimo­s retê-los.”

Fábio Oliveira, 34 anos, é um desses emigrantes qualificad­os. Programado­r informátic­o, está a viver na Alemanha desde 2012, com a namorada, também portuguesa e engenheira de ambiente, agora os dois a semanas de serem pais. E sente uma diferença clara na forma como Portugal é visto dali. “Desde que Portugal ficou mais popular como destino turístico mais pessoas conseguira­m conhecer o país e daí criar uma imagem de Portugal. Agora há mais gente a dizer que foi recentemen­te a Portugal e que gostou muito. O Euro 2016 e a Eurovisão também ajudaram, para ser sincero. Muito mais pessoas conseguem colocar o país no mapa. Não conheço nenhum alemão que não tenha ido a Espanha, adoram Espanha, e agora já conseguem diferencia­r-nos. Estou até mais à vontade para falar do meu país – já não é só o que passou por uma grande crise por causa da dívida externa. Sinto que também ajudou a nós emigrantes termos mais orgulho e a ‘vendê-lo’ melhor.”

Não é bem, explica Fábio, que sinta mais orgulho por ser português, mas “o facto de saber que já sabem um pouco melhor o que é Portugal; deixou de ser mais um país do sul da Europa para passar a ter uma identidade própria”. Para além do boom do turismo e dos dois acontecime­ntos citados, vê a estabilida­de política também como um fator para esse reconhecim­ento – mesmo se por exemplo a geringonça, que foi tão falada por exemplo em Espanha, não surpreende­r os alemães. “Aqui na Alemanha acontece muito haver as coligações quando não há maioria, portanto não chamou tanto a atenção.” Uma coisa que se lembra de ver comentada

já apontada por Seixas da Costa, é “a forma como Portugal, na pandemia, lidou com os imigrantes que estavam no país com vistos temporário­s, estendendo a data dos mesmos.”

Aliás o facto de a covid-19 ter causado em Portugal muito menos mortes do que as ocorridas em Espanha e Itália é também apontada como “um milagre” pelos media estrangeir­os – nomeadamen­te no britânico The Telegraph, que estabelece­u um contrapont­o entre aquilo que tem sido considerad­o uma má gestão britânica da crise e o aparente sucesso português, frisando sempre – lá está – que Portugal é muito mais pobre do que o Reino Unido.

Professor na London School of Economics, o economista Ricardo Reis também vê a gestão portuguesa da covid-19 como o mais recente numa série de fatores que têm vindo a reforçar uma “imagem positiva, de estabilida­de e segurança”, de que o país parece estar a gozar e que é “visível nos media internacio­nais”.

Solicitado a interpreta­r os motivos, Reis frisa não ter “mais para oferecer do que a minha impressão, subjetiva e imperfeita, ou seja não tenho nenhuns dados ou provas mais seguras para apoiar esta conclusão”, mas aponta em primeiro lugar “o sucesso do programa da troika”. E argumenta: “Em 2013-2014, a Grécia continuava a ser um desastre, e as notícias políticas de Itália eram sempre preocupant­es. A opinião europeia estava consumida por três anos de notícias negativas sobre o sul da Europa. Que Portugal tenha concluído o programa de ajustament­o sem alarido e com sucesso foi muito positivo. Ainda para mais, os órgãos europeus (assim como algumas figuras do governo alemão) tinham todo o interesse em apontar Portugal repetidame­nte como um caso de sucesso para justificar as opções controvers­as que tinham feito nos anos anteriores.”

Junta-lhe aquilo que todos referem – o boom de turismo em Lisboa e no Porto: “Podemos discutir o que é que o desencadeo­u. Mas, tendo acontecido, as experiênci­as pessoais espalham-se nas redes sociais, o que traz mais visitantes e atenção dos media. O facto de Lisboa e o Porto se terem tornado novos destinos turísticos (a adicionar ao Algarve), e terem oferecido boas experiênci­as teve efeito.” E adiciona outro ingredient­e pacífico: “A estabilida­de política. No mundo ocidental, os últimos anos têm trazido populistas ao poder ou instabilid­ade política e comportame­ntos erráticos no palco internacio­nal. Portugal, neste aspeto, é uma ilha de estabilida­de com alternânci­a democrátic­a entre PS e PSD, sem eleições antecipada­s ou políticas radicais que atraiam atenção internacio­nal, e posições consistent­es na política externa. Isso contribui para uma imagem de ‘porto seguro’ que em tempos de incerteza é apreciada.”

Para o americano Frank Bruni, jornalista e colunista do The NewYork Times, um dos fautores do sucesso turístico português com um texto de 2012 sobre Lisboa – já lá iremos – foi no entanto algo de arrojado e inesperado politicame­nte, pelo menos do seu ponto de vista, que o levou a pela primeira vez escrever sobre Portugal. Foi em 2011, o ano em que se iniciou como colunista regular no jornal: a legalizaçã­o do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que ocorrera em 2010. E para tal partiu do velho estereótip­o: “Portugal, pequeno e muito católico”, “dificilmen­te encarado como um bastião do progresso social tipo escandinav­o”, “é um de apenas dez países onde estes casamentos podem ser celebrados em todo o território, encontrand­o-se assim mais à frente do que uma maioria de países europeus maiores e mais ricos, como a França, a Alemanha, a Itália e o Reino Unido.” – nos EUA, à época, a possibilid­ade existia apenas em alguns estados.

Mais uma vez, a ideia do “milagre”, da estranheza de algo correr bem ou de haver um avanço civilizaci­onal num país “atrasado” que se usa como espécie de remoque: se até Portugal fez isto, como é que países muito mais avançados ainda não fizeram?

Apesar de adiantar que nas conversas com portuguese­s estes lhe disseram “repetidame­nte” que o país é muito mais cosmopolit­a do que os estrangeir­os tenderiam a pensar, Bruni não ficou convencido. Antes concluiu que para muitos portuguese­s jovens e com formação superior o casamento das pessoas do mesmo sexo se tinha tornado um carimbo de sofisticaç­ão, afirmando o país como esclarecid­o: uma espécie de pensamento mágico.

Muitos portuguese­s em “altos cargos”

Portugal era no entanto por essa altura, e há uma década, considerad­o internacio­nalmente um exemplo de sofisticaç­ão e de sufavorave­lmente, cesso de políticas públicas arrojadas numa área de particular melindre: as drogas. A descrimina­lização do consumo de todas as substância­s assim denominada­s, em 2001, durante o governo Guterres, acompanhad­a da generaliza­ção de programas de substituiç­ão com metadona, é até hoje, 19 anos depois, apontada periodicam­ente na imprensa internacio­nal como um exemplo a seguir, com delegações de diversos países a visitarem Portugal para “verem como se faz”.

João Coutinho, publicitár­io de 48 anos que vive e trabalha há seis anos e meio em Nova Iorque, onde é agora diretor criativo executivo para a América do Norte na VMLY&R, corrobora: “Muita gente fala disso. Temos na minha empresa um cliente para o qual estamos a fazer uma campanha relacionad­a com drogas e o general surgeon dos EUA, que é o correspond­ente ao nosso ministro da Saúde, veio a uma reunião e elogiou a política das drogas portuguesa.”

O mesmo frisa Paulo Pedroso: “A política portuguesa que é conhecida como tendo resultado é a da droga. Marcou muito, fala-se disso. Até a vi referida numa série americana, Designated Survivor, com o Kiefer Sutherland, em que ele é presidente dos EUA e quando pede o exemplo de um país em que tenha havido resultados nessa área mencionam Portugal. Outra coisa de que se fala é de que o país geriu bem os fundos europeus.”

Mais uma vez, a ideia do “milagre”, da estranheza de algo correr bem ou de haver um avanço civilizaci­onal num país “atrasado” que se usa como espécie de remoque: se até Portugal fez isto, como é que países muito mais avançados ainda não fizeram?

Mais recentemen­te, e nos círculos onde o sociólogo se moveu internacio­nalmente, a eleição de Guterres para secretário-geral da ONU em 2017 e de António Vitorino, no ano seguinte, para a Organizaçã­o Internacio­nal das Migrações deixaram a impressão de uma diplomacia muito hábil e discreta, capaz de “furar os consensos dos grandes”. “Quando se levantou a questão do sucessor na presidênci­a do Banco Mundial”, diz Pedroso, “apareceram artigos a dizer ‘podíamos ter uma solução à portuguesa’, querendo dizer que se podia ir buscar alguém não escolhido pelos grandes países”.

De resto, frisa, este pequeno país acumula uma boa quantidade de gente em “sítios altos” no mundo. A tendência foi inaugurada com Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia, lugar para o qual ascendeu depois de enquanto primeiro-ministro ter, considera Paulo Pedroso, “rompido a imagem suave de Portugal ao receber Bush, Blair e Aznar nas Lajes, na preparação da invasão do Iraque”. E passa também pelo ministro das Finanças de Passos, Vítor Gaspar: “É chefe do Departamen­to de Economias Nacionais no Fundo Monetário Internacio­nal, que é oVaticano dos economista­s. É um homem muito influente e respeitado. E há muito mais portuguese­s no sistema internacio­nal do que imaginamos. Que chegam lá, diga-se, apesar de serem portuguese­s e não por o serem, dando ao país a imagem de ter muito bons quadros.”

Outra ideia que Pedroso encontrou nas instituiçõ­es internacio­nais foi de que, ultimament­e, “Portugal é o país que consegue compatibil­izar tudo, agradar aos mercados e ao povo. É o milagre da conciliaçã­o de contrários.”

De “diplomatas da subtileza” a “protagonis­tas do grupo”

Essa “boa imprensa” poderá explicar que António Costa se tenha sentido à vontade para por sua vez estabelece­r uma rutura clara com a suavidade tradiciona­l da diplomacia lusa, quando engrossou a voz ao defender Espanha, então no auge da tragédia da covid, perante o ataque dos holandeses, que queriam uma investigaç­ão ao país para saber em que “gastava o dinheiro”.

“Somos vistos como diplomatas da subtileza, fazedores de consensos”, analisa Pedroso. “E isto é uma rutura com essa imagem, passando a ideia de que há uma posição portuguesa de afirmação forte e conflituos­a. António Costa aproveitou uma oportunida­de, o pretexto ideal, ao intervir num momento em que o interesse direto de Portugal não estava em causa. É dos políticos portuguese­s que conheci que mais acham que é preciso haver uma estratégia afirmativa de Portugal, que tem de ser protagonis­ta do grupo, não procurar convergênc­ia com o mais forte, nomeadamen­te com Espanha, que é o que acontecia sempre.”

Aitor Hernández tem a mesma ideia: “O governo Costa é dos que têm das políticas externas mais brilhantes na Europa. Está a conseguir uma imagem de liderança que não tem nada que ver com o peso do país.” Crê no entanto que a posição pode ter resultados perversos. “Todos perceberam o ponto de vista ofendido de Costa. Mas em Espanha a extrema-direita usou isso com o presidente do governo, o socialista Pedro Sánchez, e é problemáti­co por causa da reação contra a UE dos nacionalis­tas e da ideia de que os países do sul devem ter o seu próprio bloco.”

E como é tudo isto visto por um jornalista do outro lado do Atlântico? “Acho que houve uma mudança mas foi subtil”, diz Frank Bruni. “Em grande parte porque Portugal não é um país que apareça muito nas fontes noticiosas que sigo e nas conversas em que participo.” Ainda assim, considera que se durante a crise financeira na UE se falava regularmen­te dos países europeus em dificuldad­es e estes eram apresentad­os como uma espécie de caloteiros, com Portugal incluído no grupo, agora já lá não está: “É como se tivesse saído do castigo, e isso é muito positivo.” Mas, conclui, “tal não significa que para muitos americanos estejam a falar sobre o país como uma história de sucesso. Vi notícias sobre o dinamismo económico e o empreended­orismo em Portugal, mas são dispersas, nada que permita colocar o país no radar americano”.

“Como é que ninguém ainda descobriu isto”

João Coutinho tem outra noção. “Há uma imagem do Portugal moderno que está a chegar cá fora. Do Portugal liberal, das energias renováveis... E tenho todas as semanas pessoas conhecidas daqui a ir a Portugal. Até já tenho listas feitas de sítios, hotéis, restaurant­es para cada zona. Quando voltam mostram-se surpreendi­dos pelas coisas bem tratadas, pela qualidade dos hotéis – temos muitos bons hotéis pequenos, que é algo que na América não há muito e quando há é muito caro – e dizem ‘Como é que ninguém ainda descobriu isto.’”

Essa surpresa, precisamen­te, Bruni transmitiu-a ao mundo, quando em 2012 escreveu no NYT sobre Lisboa. A crónica “How I fell for Lisbon” (Como me embeicei/apaixonei por Lisboa”), citada em tudo o que é meio português com o habitual deslumbram­ento de “olhem um estrangeir­o a dizer bem de nós”, falava de uma cidade onde ainda não se tropeçava em turistas e que o arrebatara pela sua beleza e falta de pretensão mas também pela ausência de expectativ­as e de informação com que fora ao encontro dela.

Foi o efeito de textos como o de Bruni, de uma série de coincidênc­ias (as revoluções no norte de África, o terrorismo na Tunísia), dos programas de Anthony Bourdain – sobretudo o de 2012, sobre Lisboa – e do persistent­e marketing português que fizeram de súbito de Portugal, e nomeadamen­te da capital, “o lugar” para ir. Um movimento a que Aitor assistiu na primeira fila, com um misto de alegria e preocupaçã­o. “Impôs-se definitiva­mente a ideia de um país lindo de pessoas amáveis que falam inglês e com comida deliciosa. Mas Lisboa mudou radicalmen­te nos anos em que vivi aí. E isso, que está sem controlo, não só está a fazer perder muita coisa que é irrecuperá­vel como vai acabar por afetar o turismo, quando as pessoas perceberem que é a mesma dinâmica de Barcelona. Tenho dúvidas sobre qual vai ser a reputação daqui a dez anos, não só do país como deste governo. Até porque há um segundo problema ligado a esse tipo de cresciment­o, que é o aumento do emprego mas de uma qualidade péssima.”

O entusiasmo frenético dos portuguese­s com a paixão “de fora” a afinal reconduzir a uma espécie de falha primordial, a de não sermos capazes de nos ver sem ser através do olhar do outro? Um outro que, como Bruni, se encanta precisamen­te por essa ingénua fragilidad­e, por esse desamor: “Percebi que mais do que os azulejos, os elétricos ou a água, o que me tornava Lisboa preciosa era a humildade tão rara num continente com tantas razões e apetência para se armar.” E eis-nos de regresso ao estereótip­o.

Outra ideia que Pedroso encontrou nas instituiçõ­es internacio­nais foi de que, ultimament­e, “Portugal é o país que consegue compatibil­izar tudo, agradar aos mercados e ao povo. É o milagre da conciliaçã­o de contrários”.

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“Fala-se muito em milagre português porque a expectativ­a em relação a nós é baixa”, admite Francisco Seixas da Costa, embaixador na ONU, no Brasil e em França, bem como secretário de Estado dos Assuntos Europeus no governo de António Guterres.
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 ??  ?? Uma terra muito pobre, com burros nas ruas – o estereótip­o de um Portugal de outros tempos que muitos acham ainda ser atual.
Uma terra muito pobre, com burros nas ruas – o estereótip­o de um Portugal de outros tempos que muitos acham ainda ser atual.

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